Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
E CHEGÁMOS!
O Chalet Gonçalves cheira a mofo, porque há meses que está fechado.
Desde que enviuvou, a D. Bibiana nunca mais cá viveu, e a minha mãe, com as confusões e atrasos da nossa vinda, até se esqueceu de lhe pedir que abrisse as janelas uma semana antes, como sempre faz.
Mas assim que chegamos a Pedrouços, respira-se logo outro ar! Se eu pudesse, vivia cá sempre.
O meu pai veio connosco no vapor até Belém, e depois no trem até aqui, mas voltou logo para Lisboa.
Ainda não se recompôs do comício da semana passada…Era tardíssimo quando chegou a casa, e vinha tão excitado, e falava tão alto com a minha mãe, que eu, estremunhado, levantei-me da cama, fui ter com eles à sala e perguntei:
- Já há República?!
Não havia – mas, para utilizar as suas palavras, aquele tinha sido “um comício histórico”, nunca se tinha visto nada assim, mais de cem mil pessoas na rua!
- Dizem que até a D. Amélia já admitiu que a coroa está em jogo! É agora!
Fez-me uma festa na cabeça e acrescentou:
- Podes escrever no teu diário isto que te digo!
Já perdi a conta às vezes que ele me diz que tudo está mesmo por dias, mas não o quis desiludir: não devemos tirar as ilusões a um adulto, que nunca sabe o que fazer sem elas… Por isso sorri, acenei com a cabeça e voltei para a cama.
E nestes dias, para falar verdade, não tenho pensado muito na República, nem no Povo, nem no Rei (que continua no Buçaco…)
Só penso na bicicleta, na praia, nos piqueniques e nas burricadas.
Eu agora já sei nadar, e gosto de me meter pelo mar dentro, embora saiba que as pessoas, quando vêm para a praia, não vêm para se divertir, vêm porque lhes faz bem à saúde. As mães vêm para a praia porque os filhos precisam de energia e vigor, coisas que, como todos nós sabemos, as cidades não dão.
Digamos que a praia é um remédio. Em vez de engolirmos xaropes e Pílulas Pink, e purgantes (odeio canja porque
é sempre nela que a minha mãe mistura o óleo de rícino que tenho de tomar antes virmos para cá…) — tomamos banhos de mar.
E como um remédio se engole porque tem mesmo de ser — também aqui se passa o mesmo: vamos ao banho porque tem de ser e, lá diz a Rosa, “o que tem de ser tem muita força”.
Quando eu era pequeno, os banhos eram o meu pesadelo…De manhã, lá pelas onze horas, já eu estava com o meu fato de banho diante do mar à espera do Sr. Manuel, que é há muitos anos o banheiro a quem todas as mães entregam os filhos.
Ele chegava, apertava-me o nariz e atirava-me para dentro da água! Às vezes, antes de me atirar para o mar, mergulhava a minha cabeça sete vezes seguidas na água, eu sem fôlego a pensar que morria, e ele: “é para prevenir a gaguez e para impedir que os demónios entrem no seu corpo!”
Não sei se os demónios alguma vez tentaram entrar no meu corpo - mas até hoje ainda não percebi como não fiquei gago para o resto da vida.
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
E CHEGÁMOS!
O Chalet Gonçalves cheira a mofo, porque há meses que está fechado.
Desde que enviuvou, a D. Bibiana nunca mais cá viveu, e a minha mãe, com as confusões e atrasos da nossa vinda, até se esqueceu de lhe pedir que abrisse as janelas uma semana antes, como sempre faz.
Mas assim que chegamos a Pedrouços, respira-se logo outro ar! Se eu pudesse, vivia cá sempre.
O meu pai veio connosco no vapor até Belém, e depois no trem até aqui, mas voltou logo para Lisboa.
Ainda não se recompôs do comício da semana passada…Era tardíssimo quando chegou a casa, e vinha tão excitado, e falava tão alto com a minha mãe, que eu, estremunhado, levantei-me da cama, fui ter com eles à sala e perguntei:
- Já há República?!
Não havia – mas, para utilizar as suas palavras, aquele tinha sido “um comício histórico”, nunca se tinha visto nada assim, mais de cem mil pessoas na rua!
- Dizem que até a D. Amélia já admitiu que a coroa está em jogo! É agora!
Fez-me uma festa na cabeça e acrescentou:
- Podes escrever no teu diário isto que te digo!
Já perdi a conta às vezes que ele me diz que tudo está mesmo por dias, mas não o quis desiludir: não devemos tirar as ilusões a um adulto, que nunca sabe o que fazer sem elas… Por isso sorri, acenei com a cabeça e voltei para a cama.
E nestes dias, para falar verdade, não tenho pensado muito na República, nem no Povo, nem no Rei (que continua no Buçaco…)
Só penso na bicicleta, na praia, nos piqueniques e nas burricadas.
Eu agora já sei nadar, e gosto de me meter pelo mar dentro, embora saiba que as pessoas, quando vêm para a praia, não vêm para se divertir, vêm porque lhes faz bem à saúde. As mães vêm para a praia porque os filhos precisam de energia e vigor, coisas que, como todos nós sabemos, as cidades não dão.
Digamos que a praia é um remédio. Em vez de engolirmos xaropes e Pílulas Pink, e purgantes (odeio canja porque
é sempre nela que a minha mãe mistura o óleo de rícino que tenho de tomar antes virmos para cá…) — tomamos banhos de mar.
E como um remédio se engole porque tem mesmo de ser — também aqui se passa o mesmo: vamos ao banho porque tem de ser e, lá diz a Rosa, “o que tem de ser tem muita força”.
Quando eu era pequeno, os banhos eram o meu pesadelo…De manhã, lá pelas onze horas, já eu estava com o meu fato de banho diante do mar à espera do Sr. Manuel, que é há muitos anos o banheiro a quem todas as mães entregam os filhos.
Ele chegava, apertava-me o nariz e atirava-me para dentro da água! Às vezes, antes de me atirar para o mar, mergulhava a minha cabeça sete vezes seguidas na água, eu sem fôlego a pensar que morria, e ele: “é para prevenir a gaguez e para impedir que os demónios entrem no seu corpo!”
Não sei se os demónios alguma vez tentaram entrar no meu corpo - mas até hoje ainda não percebi como não fiquei gago para o resto da vida.
«JN» de 14 Ago 10
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