sábado, 9 de outubro de 2010

VIVA (ENFIM!) A REPÚBLICA!!

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA CABEÇA está baralhada e nem sei por onde começar.
A confusão toda começou quando há dias o Alfredo entrou aos berros, “um louco assassinou o Dr. Miguel Bombarda!”
A minha mãe caiu desamparada na chaise-longue da sala, gritando “ai que mal que eu me sinto!”, e o meu pai, sem saber se havia de acudir à Pátria ou à mulher, disse:

- Chamem a parteira! - e desapareceu pelas escadas com o Alfredo, que não parava de perguntar “e agora quem é que distribui as armas ao pessoal?”

Foi então que percebi que a revolução vinha aí, e que desta vez é que era. Segundo ouvi dizer, havia senha para os revoltosos e tudo! “Mandou-me procurar?”, era a pergunta, - a que se devia responder “passe, cidadão!”
Não sei explicar mas, desde esse dia 3, em que o doutor foi assassinado, até ao dia 5, em que o meu pai entrou em casa de madrugada cheio de sangue nas calças - na minha cabeça não há divisões, nem manhãs nem noites, como se tivesse sido tudo um único dia.
O meu pai andava num entra e sai, preocupado com a criança a nascer em casa, e com a revolução a nascer na rua.
E de cada vez que entrava, trazia notícias diferentes.

- A revolução a rebentar, e o rei a jantar com o presidente do Brasil! Disseram-lhe que seria melhor cancelar o jantar — e ele disse que o mais que podia fazer era prescindir da sobremesa para acabar mais cedo!

Às vezes o meu pai vinha eufórico, e falava de nomes como Machado Santos, Afonso Costa, José Relvas, João Chagas, e os olhos dele brilhavam quando contava que os bravos de Infantaria 16 não tardavam a vir por aí abaixo, e que os soldados se tinham deitado vestidos e equipados para estarem prontos a sair quando fosse dado o sinal!
Mas às vezes chegava desanimado, como quando se deixou cair no sofá da sala, murmurando:

- O almirante Cândido dos Reis suicidou-se.

Até a minha mãe se esqueceu das dores.

- Ainda me parece estar a ouvi-lo ontem : ”Se me julgasse incapaz de assumir o comando das forças da marinha e de as conduzir à vitória, dava um tiro na cabeça!” Disseram-lhe que estava tudo perdido e ele não aguentou.

Mas logo o meu pai recuperou forças e voltou a sair, exclamando:

- Mas nada está ainda perdido!

Foi quando apareceu o Alfredo a gritar “Machado Santos está na Rotunda com mais 400 homens, e vão chegar muitos mais! “
Saíram os dois e nunca mais os vimos até à madrugada do dia 5, quando nos entraram pela casa, exaustos, empoeirados, colarinhos abertos, casacos rotos, manchas de sangue nas calças.

- Ganhámos!...

Exactamente no momento em que a parteira saía do quarto da minha mãe e dizia:


- Manuel Alfredo… - murmurou o meu pai. — Nasce no dia em que se anuncia um mundo novo!

O meu filho vai ter…
E a parteira:

- “Menina”, eu disse “menina”…

Resumindo (até porque este caderno está mesmo a acabar e não me apetece muito começar um novo) : já temos República, o rei, as rainhas e o Arreda foram de barco para o exílio em Gibraltar, e vamos escolher um presidente.

- Cá estaremos para ver no que dá…- murmura a minha avó.

É isso: cá estaremos
(Ah, e a minha irmã foi baptizada com o nome de Maria da Anunciação.
Sempre se podem aproveitar os monogramas da roupa).
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«JN» de 9 Out 10

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