sábado, 2 de outubro de 2010

“CONQUISTEI O EXÉRCITO!”

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Por Alice Vieira

FALTA POUCO para voltar à escola e, para aproveitar os dias de liberdade que me restam, pedi ao meu pai que me levasse ao Coliseu : há lá uma dupla irresistível de cómicos e o cavaleiro australiano Silant faz prodígios com o chicote!

Mas o meu pai disse que não estamos em tempo de palhaçadas.
Depois do jantar a Rosa disse que, se eu quisesse, podia ir com ela e com o Alfredo para a semana ao teatro.

- O Alfredo tem entradas para o Teatro do Príncipe Real! Deu-lhas um marçano amigo dele. Eu conheço-o, chama-se António Silva e é um tipo magrinho e com muita graça! O António entra na peça que se estreeou agora, chamada “O Rei Maldito”. Quer dizer, entra e sai, porque quase nem abre a boca, mas já é o suficiente para ter direito a borlas!

A Rosa contou que o Alfredo nem queria ir porque diz que a vida não vai para teatros, mas ela lá o convenceu. Agora, resta-me convencer a minha mãe.
Mas não são apenas o meu pai e o Alfredo que estão preocupados : toda a gente anda sobressaltada.
As greves não têm fim. Neste momento há greves dos tanoeiros, dos tipógrafos, dos conserveiros, dos garrafeiros, e sobretudo dos corticeiros, que estão a ocupar as estações de caminho de ferro, para impedir o embarque da cortiça.
Ouvem-se os boatos mais desencontrados, e as prisões continuam.
Ontem a D. Etelvina, que agora vem cá quase todas as tardes para acabar o enxoval do meu irmão, até tremia só de pensar nos dois vizinhos que de manhã tinham sido levados pela polícia.

- Imagine a Sra.D. Joaquina - dizia ela para a minha avó — eu a cruzar-me com eles todos os dias, “boa tarde, Sr. João Borges! Boa tarde, Sr. Manuel Ramos!”, e eles , “boa tarde D.Etelvina!”, sempre muito bem educados - e vai-se a ver eram bombistas! A polícia diz que eles tinham em casa centenas de bombas! Já viu se aquilo tudo explodia lá no prédio?!

E a D. Etelvina tremia tanto que até se picou com a agulha.

- Isto anda muito mal — disse a minha mãe — mas o rei continua por aí a passear como se nada fosse…Andou pelo Buçaco a brincar às batalhas…
- Era um centenário importante! — a voz ofendida da minha avó.

A minha mãe riu:

- Coitado, acho que ele não está mesmo a perceber nada do que se passa...Contaram-me que lá no Buçaco, depois das cerimónias, e dos desfiles e dos “vivas” do costume, exclamou: “Conquistei o exército!”

E a minha mãe deu uma gargalhada:

- Agora anda a fazer de cicerone ao Presidente Hermes da Fonseca, que acabou de chegar do Rio de Janeiro… Não me admiro nada de o ouvir dizer um dia destes: “conquistei o Brasil!”

A minha mãe estava mesmo bem disposta. Foi então que me lembrei de lhe perguntar por que é que o meu irmão se vai chamar Manuel Alfredo.
Ela ficou muito séria e foi a minha avó que exclamou:

- Porque o teu pai não tem vergonha na cara e vai dar ao filho o nome dos dois criminosos que mataram D. Carlos e D. Luís Filipe!

A minha mãe encolheu os ombros e ficou a abanar a cabeça, enquanto a minha avó levava a D. Etelvina até ao roupeiro para guardarem mais um lençol!

«JN» de 2 Out 10

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