domingo, 25 de setembro de 2011

FIM DO ANO EM SETEMBRO


Por Alice Vieira

Está assente que as festas têm o seu dia próprio. E quando qualquer coisa foge a esta regra, até os deuses se espantam

NUNCA SE LEMBRA de ter pensado no mês de Dezembro em termos de fim do ano.
Para ela, só havia anos lectivos e, por isso, o ano começava em Outubro e acabava em Julho – e entre eles seguiam-se uns meses de ninguém em que nada acontecia, a não ser umas leves e brevíssimas paixonetas, uns quilos a mais, e as saudades de regressar ao tempo normal.
Depois o calendário escolar teve de se adaptar à Europa, e ela teve de se habituar a que o ano começasse em Setembro – o que reduzia substancialmente o tempo em que tudo parecia parado.
Habituou-se menos mal — embora no seu íntimo, e porque já não tinha em casa ninguém em idade de entrar em horário escolar, só se sentisse verdadeiramente a atacar a frescura de um novo ano depois dos festejos da república.
Mas pronto, Setembro dava o ritmo.
Então fazia projectos, mudava as fotografias das molduras, punha a escrita em dia (sim, ela ainda se gabava de escrever cartas e postais e de não falhar um dia de anos de ninguém), escolhia novos livros para a mesa de cabeceira, começava a tricotar uma camisola, iniciava a dieta, não falhava o ginásio.
Um ano, novinho em folha, esperava por ela.
E era então que a atacava, forte e feia, a vontade maluca de fazer uma festa de fim de ano.
Festa de fim de ano a sério, com champanhe, ceia, serpentinas, ridículos chapelinhos de cartão no cocuruto da cabeça, música pimba a animar as massas, atacadas por papelinhos e línguas-de-sogra (por que raio se chamará língua-de-sogra àquilo? E por que não língua-de-nora?), telefonemas e sms à meia noite para os amigos, desejando a todos, com a voz embargada pela comoção, “boas festas e feliz ano novo!” Ou “boas saídas e melhores entradas!”
Por que não escolher, por exemplo, o dia 30 de Setembro?
E por que não este ano?
Este ano, já viu no calendário, até calha a uma 6ª feira, dia entre todos conveniente para festejos pela madrugada fora.
Deu consigo, de repente, a fazer listas : listas de amigos a convidar para a ceia, lista do que precisaria de trazer do supermercado, lista de telefonemas a avisar daquele princípio de ano em finais de Setembro.
E logo no dia seguinte o plano foi posto em prática.
Telefonemas, mails, sms, recados no facebook e nos atendedores de chamadas: “se o Natal pode ser quando um homem quiser, por que não o Ano Novo?”, rematava sempre nas mensagens que deixava.
Andava feliz: finalmente ia festejar em condições, e na altura em que sempre sonhara, um ano novinho em folha.
A pouco e pouco os amigos foram respondendo.
Que nesse dia não estavam em Lisboa.
Que era o dia de anos do sogro, ou da prima, ou da cunhada.
Que iam fazer todos os possíveis e lá mais para diante davam uma resposta.
Todos com voz estranhamente rouca, pausada, ela quase nem os reconhecia.
Até que uma tarde a filha lhe telefonou, com aquela voz tão cheia de riso que mal se conseguia perceber o que dizia.
- Pelo amor de Deus, mãe!, deixa-te dessa maluqueira de quereres festejar o ano novo em Setembro! Não fazes ideia da quantidade de gente que me tem telefonado a perguntar se o que tens é assim tão grave, se é mesmo um caso tão desesperado que nem tens a certeza de poderes chegar a Dezembro!
Ficou incapaz de dizer fosse o que fosse.
Quando desligou o telefone, a filha ainda ria.

«ACTIVA» de Set 11

1 comentário:

  1. Uma delícia esta crónica! Tão divertida e bem escrita, como sempre nos habituou! Também eu estou sempre pronta para festas..e para histórias. Mas desta nunca me tinha lembrado!
    historiasdenos.blogspot.com

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