quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ÓDIO VELHO

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Por Alice Vieira

DE VEZ em quando ouvia-se a voz da mãe, do canto da sala:

- Não se esqueçam de levar o cão à rua.
- Esteja descansada – respondia ela, ou alguém que andasse por perto.

Raramente a mãe dizia fosse o que fosse.
Sentada diante da porta de vidro que dava para o jardim, ali ficava manhãs inteiras, silenciosa.
Nem mesmo quando às vezes os miúdos iam lá a casa ela mostrava algum tipo de emoção. Só o cão a preocupava.
Se não fosse o cuidado com o cão, Teresa era bem capaz de supor que ela perdera o uso da fala. Mas o médico já lhe dissera que era assim mesmo, e que muita sorte eles tinham de ela não ser violenta ou agressiva, como muitas nas suas condições.
Não havia cão nenhum lá em casa.
Nunca tinha havido cão nenhum lá em casa.
O pai sempre detestara animais (“animais só no Jardim Zoológico e em jaulas!”) e nem pensar em contradizê-lo. Quando morreu, Teresa e os irmãos já tinham todos saído de casa e, quando um deles sugeriu que um cão talvez fosse uma boa companhia para a mãe, agora sozinha naquele casarão, ainda para mais com jardim, ela disse zangou-se e disse que tinha mais que fazer do que criar animais, que além disso eram uma prisão.
Ninguém mais tocou no assunto, e o cão passou à história.
Às vezes Teresa punha música. Sentia que a rádio a enervava ligeiramente, por isso decidira-se por músicas calmas, uma ou outra ária de ópera, de que ela fora sempre fanática. Desde criança que se lembrava de ir a reboque dos pais e dos irmãos para o camarote no S. Carlos, e tentar, muitas vezes sem resultado, ficar acordada até ao fim.
Naquela tarde caíra-lhe no colo um CD que há dias Gabriel lhe dera. O irmão mais velho fôra o único a herdar a paixão da ópera, e vibrava imenso quando conseguia encontrar gravações históricas ou de intérpretes já esquecidos.
Como aquela, de uma brasileira de que ela nunca tinha ouvido falar - a bem dizer, em termos de Brasil, ela era mais Caetano e Bethânia - mas que o irmão garantia ter sido, no seu tempo, mais popular que a Callas.
Mostrou-o à mãe, que quase nem olhou para ele.

- A mãe alguma vez ouviu falar desta cantora? Bidu Saião… Nome estranho… Mas o Gabriel diz que o pai gostava muito…

Nem teve tempo de acabar a frase. Com uma energia há muito desaparecida, a mãe arranca-lhe o CD das mãos e atira-o pela porta fora.
Mais calma, murmura apenas:

- Se alguma vez a vires na escada, nunca a cumprimentes.

À noite, quando o irmão passou por lá, como sempre fazia antes de ir para casa,Teresa contou-lhe a história.

- Ódio velho não cansa, nunca ouviste dizer? –riu-se ele.
- Mas ela alguma vez conheceu esta .…
- Bidu Saião. Não, claro que não. Mas o nosso pai passava a vida a dizer “ a Fernandinha é tal qual a Bidu Saião…E canta tão bem como ela…
- A Fernandinha?
- Tu eras pequena e não te lembras. Era a nossa vizinha de cima, quando morávamos nas Avenidas Novas. Acho que estudava no conservatório. Lembro-me muito bem de o pai ficar imenso tempo à varanda, a olhar para cima, quando ela cantava…

Riram-se os dois.
Antes de sair, Gabriel foi até junto da mãe e murmurou:

- Com que então, ainda se lembra da Bidú Saião…

Mas a mãe já tinha regressado o seu mundo. Fez-lhe uma festa, sorriu, e disse:

- Não te esqueças de levar o cão à rua

ACTIVA de Outubro de 2011

2 comentários:

  1. Alicinha
    Como de costume, adorei a sua história tão cheia de realismo e sensibilidade.
    Quero mais!!!!!!!!!!!!!
    Abraço amigo
    Maria

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  2. Alicinha
    As suas crónicas despertam-me a curiosidade, aguçam-me a vontade de saber mais.
    Nunca tinha ouvido falar da Bidu Sayão, embora tenha crescido a ouvir ópera. Conheço muitos cantores antigos mas, esta era-me desconhecida.
    Fui à procura e, encontrei a senhora cantando a 5ª Bachianna de Villalobos. É linda, tem uma voz maravilhosa.
    Não admira que o pai gostasse e a mãe tivesse esse ódio, se a tal menina Fernandinha era mesmo assim. Eu teria.
    A dita, Bidu, morreu em 1999, com 98 anos.
    Vou procurar o disco, quando sair. Obrigada por me ter apresentado tão linda voz.
    Beijinho da sua curiosa amiga
    Maria

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