sábado, 12 de junho de 2010

O DIA DE CAMÕES

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

DESDE QUE EU ME LEMBRO de ser gente que o dia 10 de Junho se festeja cá em casa.
Se calha a dia de semana, festeja-se mais tarde porque o meu pai tem de fechar a livraria e eu tenho de chegar do colégio.
Se calha a um domingo, festeja-se mais cedo, assim que a minha avó e a minha mãe chegam da missa.
Vamos todos até ao Chiado, bem junto da estátua, e o meu pai recorda a vida do poeta: as privações por que passou, a perda de um olho (nesse momento a minha avó murmura “ai coitadinho…”), o naufrágio (nesse momento a minha mãe murmura “ai, Dinamene!...”), e o regresso à pátria – e nesse momento eu murmuro “ cá vou eu…” porque já sei que é a altura de o meu pai apontar para as estátuas que rodeiam, cá em baixo, a figura do poeta lá no cimo, e perguntar:

- Zé Joaquim, quem são estes?

Com o treino destes anos todos, já os conheço de cor:

- Fernão Lopes, Pedro Nunes, Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Vasco Mouzinho de Quevedo…

(Neste momento faço uma ligeira pausa porque já sei que é aqui que o meu pai murmura: “completamente esquecido e tantas vezes considerado um segundo Camões…Injustiças desta vida…” – e termino:)

- …Jerónimo Corte-Real, e Francisco Sá de Meneses.

O meu pai fica feliz, e regressamos a casa, não sem antes termos passado pela livraria, para vermos a beleza da montra: um busto de Camões, e várias edições de “Os Lusíadas”, acompanhadas de edições de “A Fome de Camões”, de Gomes Leal, “Camões” de Almeida Garrett e “Camões” de António Feliciano de Castilho –livros que eu todos os anos morro de medo que o meu pai se lembre de me mandar ler. Até agora, felizmente, tenho escapado.
Depois ao jantar o meu pai recorda os grandes festejos do terceiro centenário — as luzes, o cortejo, os barcos no rio — e remata:

- Eu tinha 16 anos, e marcou-me para a vida.

Nesse momento sabemos que a evocação está terminada, e a vida volta ao normal.
O meu pai está sempre a dizer que é uma vergonha o10 de Junho não ser feriado.
(De resto, eu acho que é uma vergonha os dias todos não serem feriados, porque em todos eles deve ter acontecido qualquer coisa de extraordinário ao longo destes 1910 anos…)
E acrescenta:

- Claro que se fosse um santo tinha direito a isso e a muito mais…É ver o que acontece com o Santo António!...

Aí eu já não digo nada, porque no dia de Santo António vou sempre com a Rosa e o Alfredo aos arraiais de Alfama. Comem-se sardinhas, há muita música, e gosto de ver os tronos.
O Alfredo, que sabe muitas coisas, já me contou que este hábito de fazer os tronos e pedir uma moedinha para o santo vem de muito longe, do ano de 1755, quando um grande terramoto destruiu Lisboa. Esta foi então uma das maneiras que o povo encontrou de arranjar dinheiro para a reconstrução da cidade.
Fico a pensar que se o povo se lembrasse de fazer tronos de Santo António para arranjar dinheiro para a revolução, se calhar a República já cá estava.
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«JN» de 12 Jun 10

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