Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
QUANDO EU ERA PEQUENO, pensava que o meu pai conhecia o mundo inteiro.
É claro que neste momento já tenho outra ideia do mundo mas, mesmo assim ainda fico admirado com a quantidade de gente que ele conhece.
Ouço-o falar de Miguel Bombarda, Machado Santos, Cândido dos Reis, Magalhães Lima e sei que um dia, quando vier a República, vão ser todos pessoas muito importantes.
Muitos são clientes habituais da livraria, ou fazem da livraria o seu lugar de conversa, ou encontram-se na Brasileira, ou vão ler as notícias do mundo enviadas pela Agência Havas que a Havaneza afixa, ou fazem por não perder um sarau do São Carlos. (Há mesmo quem assegure que são melhores as conspirações que se tramam entre as quatro paredes do São Carlos do que as óperas que lá se ouvem…)
Há mesmo um grupo de amigos do meu pai que anda pelo estrangeiro a pedir apoios para quando a revolução rebentar a sério.
Mas enquanto não rebenta, o governo não se entende.
Quer dizer, o governo nunca se entende.
Basta dizer que, desde que D. Manuel é rei, este já é o quinto governo do país. E, pelos vistos, já outro se anuncia para breve.
- Casa onde não há pão…- murmura a minha avó.
O que até vem a propósito, pois parece que até com o pão tem havido sarilhos.
Ouvi o meu pai falar disso à mesa.
Dizia ele que, como há falta de cereais, o pão fica muito caro.
(E aí aproveitou logo para exclamar, com voz de comício:
- Uma das primeiras medidas da República será fazer descer o preço do pão!)
E então, para as pessoas o poderem comprar, (“se as pessoas não comerem pão o que é que elas vão comer, com a miséria que vai por aí?”, murmura a minha mãe) ele é posto à venda abaixo do seu preço real de produção.
E então os produtores, para ver se podem lucrar mais qualquer coisita, vá de misturarem a farinha com serradura, cal e gesso!
E sei que os problemas não se ficam por aí: ontem a Rosa contou que o Alfredo lhe tinha contado que os moços de padeiros estavam em greve. E que o governo tinha mandado o exército dar serventia às padarias!
- Bem me parecia que o pão tem andado com um gosto estranho…-- disse a minha avó, metendo o dente na terceira torrada.
- Só a revolução nos pode salvar…- murmurou o meu pai.
- Muito gosta o senhor meu genro de falar em revoluções…. — disse a minha avó—Toda a gente sabe que uma revolução é um acto condenável, que vai sempre contra a ordem, contra a religião…
(A minha avó, quando quer, também tem voz de comício, mas de comício de sacristia…)
Então o meu pai aclarou a voz e disse:
- “As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. São factos fatais. Têm de vir “
- Quem é que disse isso? Algum dos seus irmãos maçons?
- Não. Por muito que lhe custe ouvir, quem disse isto foi o Eça de Queiroz.
Com uma força inaudita, a minha avó ferrou o dente na quarta torrada. Mesmo que tivesse serradura, gesso ou cal, ela tê-la-ia trincado da mesma maneira.
É claro que neste momento já tenho outra ideia do mundo mas, mesmo assim ainda fico admirado com a quantidade de gente que ele conhece.
Ouço-o falar de Miguel Bombarda, Machado Santos, Cândido dos Reis, Magalhães Lima e sei que um dia, quando vier a República, vão ser todos pessoas muito importantes.
Muitos são clientes habituais da livraria, ou fazem da livraria o seu lugar de conversa, ou encontram-se na Brasileira, ou vão ler as notícias do mundo enviadas pela Agência Havas que a Havaneza afixa, ou fazem por não perder um sarau do São Carlos. (Há mesmo quem assegure que são melhores as conspirações que se tramam entre as quatro paredes do São Carlos do que as óperas que lá se ouvem…)
Há mesmo um grupo de amigos do meu pai que anda pelo estrangeiro a pedir apoios para quando a revolução rebentar a sério.
Mas enquanto não rebenta, o governo não se entende.
Quer dizer, o governo nunca se entende.
Basta dizer que, desde que D. Manuel é rei, este já é o quinto governo do país. E, pelos vistos, já outro se anuncia para breve.
- Casa onde não há pão…- murmura a minha avó.
O que até vem a propósito, pois parece que até com o pão tem havido sarilhos.
Ouvi o meu pai falar disso à mesa.
Dizia ele que, como há falta de cereais, o pão fica muito caro.
(E aí aproveitou logo para exclamar, com voz de comício:
- Uma das primeiras medidas da República será fazer descer o preço do pão!)
E então, para as pessoas o poderem comprar, (“se as pessoas não comerem pão o que é que elas vão comer, com a miséria que vai por aí?”, murmura a minha mãe) ele é posto à venda abaixo do seu preço real de produção.
E então os produtores, para ver se podem lucrar mais qualquer coisita, vá de misturarem a farinha com serradura, cal e gesso!
E sei que os problemas não se ficam por aí: ontem a Rosa contou que o Alfredo lhe tinha contado que os moços de padeiros estavam em greve. E que o governo tinha mandado o exército dar serventia às padarias!
- Bem me parecia que o pão tem andado com um gosto estranho…-- disse a minha avó, metendo o dente na terceira torrada.
- Só a revolução nos pode salvar…- murmurou o meu pai.
- Muito gosta o senhor meu genro de falar em revoluções…. — disse a minha avó—Toda a gente sabe que uma revolução é um acto condenável, que vai sempre contra a ordem, contra a religião…
(A minha avó, quando quer, também tem voz de comício, mas de comício de sacristia…)
Então o meu pai aclarou a voz e disse:
- “As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. São factos fatais. Têm de vir “
- Quem é que disse isso? Algum dos seus irmãos maçons?
- Não. Por muito que lhe custe ouvir, quem disse isto foi o Eça de Queiroz.
Com uma força inaudita, a minha avó ferrou o dente na quarta torrada. Mesmo que tivesse serradura, gesso ou cal, ela tê-la-ia trincado da mesma maneira.
«JN» de 19 Jun 10
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