sábado, 24 de julho de 2010

O ALFREDO VOLTOU

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


ESTÁVAMOS A TOMAR o pequeno almoço, ainda o meu pai não tinha saído para a livraria quando, de repente, ouvimos um grito da Rosa.

- Um assalto! — disse logo a minha avó, levantando-se da mesa.

(A minha avó anda muito preocupada porque os jornais não param de falar da onda de assaltos e violência — “onda vermelha” é assim que eles escrevem — na cidade de Lisboa)
Mas não era um assalto, era apenas o Alfredo que voltava!
A Rosa estava branca como se tivesse visto um fantasma, e quase desmaiara ao dar de caras com ele no patamar das escadas de serviço. Mais magro, com olheiras e barba de muitos dias, depois de ter andado por aí, a seguir à fuga dos calabouços da esquadra do Caminho Novo, juntamente com alguns amigos.

- Eu não te disse, rapariga, que ele andava escondido? — disse o meu pai, acrescentando — Se calhar por causa dele e dos primos dele é que isto deu no que deu…
- O senhor sabe que não é verdade! — gritou o Alfredo, que pode estar fraco de carnes mas não está fraco de voz—Desta vez a culpa foi toda…
- Pronto, pronto! – interveio a minha mãe — o Alfredo está cá fora e está bem, hoje é dia de festa e não quero discussões!

E para a festa ser a sério, deu o dia livre à Rosa.

- Maus hábitos — resmungou logo a minha avó – Hoje dás-lhe o dia livre, para a semana também, não tarda está a exigir-te um dia livre todas as semanas! Ouve o que te digo! O pessoal tem que ser tratado com rédea curta senão abusa logo! E de resto...

E a minha avó pôs aquela cara que ela costuma reservar para os grandes problemas do mundo:

- De resto, temos muito poucos motivos para festas… A menina não lê jornais? Não sabe o que se passa?
- Sei! Sei que, por exemplo, a sua querida rainha Maria Pia…
- Dona Maria Pia, se faz favor... — emendou logo a minha avó
- …mandou vir um chapéu de Paris que custou 18 contos de réis! Isso é que eu sei! 18 contos por um chapéu, quando o povo está na miséria!

A voz da minha mãe até tremia.
(Para falar verdade, eu nem consigo imaginar o que sejam 18 contos de reis…Já os 60 reis que eu pago pelo “Texas Jack” no quiosque aqui em frente me parece uma fortuna… E oiço sempre o meu pai barafustar quando paga 80 reis pela onça de tabaco francês que fuma…)
A minha avó não lhe respondeu e continuou:

- Dizia eu que não há motivo para festas quando o rei de Espanha acabou agora de escapar a um atentado! E foi por pouco! O anarquista estava mesmo a disparar a pistola quando foi preso!
- Então... — disse a minha mãe – se escapou, ainda bem! Se tivesse morrido é que era mau!
- Não faça de conta que não percebe! A Espanha é mesmo aqui ao lado, hoje o atentado é contra Afonso XIII, amanhã é contra D. Manuel! E nem sempre falham. Lembre-se do que aconteceu a D. Carlos e D. Luís Filipe…

Suspirou muito fundo e rematou:

- Os anarquistas estão por toda a parte! É o fim do mundo.

E lá foi para a sua novena, deixando a minha mãe a lavar a loiça do pequeno almoço. Quem dava dias livres às criadas tinha de acarretar com as consequências.
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«JN» de 24 Jul 10

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