sábado, 17 de julho de 2010

PIOR QUE ARRANCAR UM QUEIXAL…

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ESTA FOI uma semana complicada.
O meu pai entrava em casa a desoras, ou até mesmo nem entrava em casa.
“Anda a dormir sabe-se lá por onde”, murmurava a minha mãe, que todos os dias refila porque não se encontra em estado de ter ralações como esta. Claro que a revolução não tem culpa nenhuma que a minha mãe esteja de esperanças, mas ela não pensa nisso.
É que a Revolução estava marcada para dia 14!
Finalmente!
Desta vez é que era!
Comemorava-se mais um aniversário da Tomada da Bastilha — que é uma data muito importante para os franceses, porque foi quando eles também puseram os reis deles fora do trono,
(eles foram muito mais apressados do que nós, e acabaram com a monarquia há mais de 120 anos…)
era uma data simbólica, e aproveitava-se o facto de D. Manuel andar distraído, de férias e de amores lá pelo Grand Hotel da Mata do Buçaco…
Mais uma vez estava tudo, tudo, para acontecer... mas mais uma vez não aconteceu.
E o meu pai não parava de barafustar que a culpa era toda daqueles incompetentes de Caçadores-2 que, à última da hora, quando se estava à espera que viessem por ali abaixo — tinham roído a corda e nem um passo tinham dado.
Bom, mas se estava tudo, tudo preparado para dia 14 — então ficaria para dia 16, que era para os ânimos não esfriarem.
“Desta vez”, disse o meu pai, “ vamos nós tomar conta do assunto!”
Quando o meu pai diz “nós”, eu já sei que se refere aos seus “irmãos” da maçonaria. Esses, segundo ele, sabem o que fazem, são rigorosos, têm a cabeça no lugar. “Os outros”, da Carbonária, são uns loucos que estragam tudo…
Então, para que nada pudesse falhar no dia 16, o meu pai contou que se tinha organizado um novo plano, que dividia a cidade de Lisboa em 6 grandes comandos, e que assim tudo ficava mais fácil de orientar.
“Desta vez é que não falha!” — disse ele para a minha mãe, antes de, mais uma vez, sair porta fora.
A minha mãe até estava admirada por ele ter falado tanto. Era a prova de que realmente estava tudo mesmo, mesmo para acontecer. Uma questão de horas, de minutos.
Mas o certo é que já hoje é dia 17- e a monarquia ainda cá está.
Desta vez parece que, no meio de mais uma reunião, alguém disse que ainda não era oportuno…
Pelos vistos, custa mais tirar a república de cá do que custou tirar da minha boca aquele queixal infectado que me fazia imensas dores! O dentista arrancou-mo que foi uma beleza. Gritei que nem um vitelo, aquilo era sangue pelo consultório todo, e um cheiro a éter que agoniava — mas pronto, cortou-se o mal pela raiz (na verdadeira acepção da frase…)
“Tudo pronto para sair para a rua, tudo controlado, os marinheiros de Alcântara e o Arsenal a postos — e vem aquela alimária e diz que não é ainda oportuno!!!” — grita o meu pai que, nestes últimos dias, não tem feito outra coisa.
Confesso que não faço ideia nenhuma do que seja “alimária” e assim que puder vou ver no dicionário.
Mas tenho cá um palpite que não deve ser coisa boa.
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«JN» de 17 Jul 10

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