sábado, 3 de julho de 2010

O MEU AMIGO AQUILINO

.
Por Alice Vieira

O ALFREDO foi preso.
A Rosa chora dia e noite, sobretudo quando se lembra do Sr.Mateus, nosso vizinho preso já há meses e de quem nunca mais se ouviu falar.
O meu pai já lhe disse que o Sr.Mateus é diferente: foi apanhado a fazer uma bomba. Ao passo que o Alfredo foi levado num grupo de muitos, que tinham sido denunciados à Secreta, mas não havia bombas nenhumas.

- Além disso — explica ele — diz-se por aí que o Mateus fugiu para França.
- Ai, Sr. Fernando!, pela sua rica saúde, não me diga que o meu Alfredo vai fugir para França!

E a Rosa corre para a cozinha, enquanto o meu pai aproveita para dizer que os da Carbonária são todos uns inconscientes, sem cuidado nenhum, e por isso estão sempre a ser presos.

- Ouve o que te digo, Zé Joaquim: não é glória nenhuma ser preso! Devemos sempre ter inteligência suficiente para sabermos trocar-lhes as voltas! Glória é lutar por uma causa justa!

Claro que, se formos presos, temos de nos portar como verdadeiros homens, mas o nosso objectivo é prosseguir a luta cá fora!
Nestes últimos tempos, o meu pai fala sempre em jeito de comício.
E a propósito da fuga do Sr. Mateus, o meu pai recordou um amigo dele chamado Aquilino Ribeiro, que eu ainda me lembro de ver na livraria, que um dia foi apanhado a fazer explodir uma bomba, foi levado para a prisão, e há mais de dois anos desapareceu.

- Está em França. De vez em quando tenho notícias dele. E, se bem o conheço, de certeza que não está parado…

Eu gostava de ouvir este amigo do meu pai. Tinha uma fala engraçada, diferente da nossa.

- O Aquilino nasceu perto de Viseu, e os beirões falam “achim” — dizia o meu pai.

Estava sempre a conspirar e a fabricar bombas e a escrever coisas contra a monarquia.
E tinha paciência para mim.
Uma vez contou-me que até tinha inventado para si próprio um nome diferente, para poder escapar melhor.

- Sou Alberto Ramos. Já sabes. Só me tratas por Alberto Ramos, ouviste?

Alberto Ramos — para que a pessoa que lhe alugava o quarto, e a lavadeira que lhe tratava da roupa não desconfiassem de nada, ao verem as iniciais “A.R.”, que a mãe dele tinha bordado em toda a roupa…
Lembro-me um dia, estava-se no Carnaval, de ver o meu pai chegar a casa vermelho de fúria, a chamar-lhe louco varrido, inconsciente e mais não sei o quê.

- Mas que foi que ele fez? — perguntou a minha mãe.
- Nem vais acreditar…Imagina que aquela alma do diabo, procurado pela polícia em toda a parte, mascarou-se de dominó e foi pedir lume ao tenente-coronel Dias!!

O meu pai dava voltas à mesa da casa de jantar, tal era a fúria:

- Ao tenente-coronel Dias! O n.º 1 da polícia do reino!

Pouco depois dessa aventura, ouvi o meu pai dizer que ele tinha fugido para França — e nunca mais me lembrei dele a não ser agora, por causa do Alfredo.
Para além da prisão do Alfredo, a única coisa importante que aconteceu é que se marcaram eleições para dia 28 de Agosto.
Este ano é que o meu pai não vai pôr o pé na praia.
.
«JN» de 2 Jul 10

Sem comentários:

Enviar um comentário