sexta-feira, 3 de agosto de 2012

AS NAUS DAS DESCOBERTAS

Por Alice Vieira

TINHA sido um verdadeiro sufoco, ela na rua e de repente a pensar
“esqueci-me das chaves e do telemóvel em casa”
A quem pedir ajuda, e como pedi-la? Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve, felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde rapidamente voltar atrás e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma qualquer emergência. Como esta.
Ainda bebeu uma tranquila bica antes de voltar a casa para buscar o que esquecera, meditando, como sempre em ocasiões semelhantes, na dependência em que todos vivemos de máquinas e tralhas afins.
Vem-lhe à memória o tempo longínquo em que o primeiro telefone móvel entrara lá em casa. Uma maravilha da técnica. Tirava-se do descanso e podia-se levar pela casa toda, e falar confortavelmente estiraçado na cama, ou na sala, ou na cozinha, enquanto se mexia a sopa.
Tinha sido o filho quem mais vibrara com o objeto. Agora podia enfiar-se no quarto, sem dar cavaco a ninguém, e passar horas com as suas diversas namoradas.
Preocupava-a aquele filho, sem nunca pegar num livro, naquela casa onde eles estavam por todo o lado e onde ninguém podia passar sem eles. Ninguém, menos ele, claro, que pelos vistos passava mesmo muito bem, porque a verdade é que tinha boas notas e não chumbava.. Mas ler não era, definitivamente, o seu passatempo favorito.
Por isso ela se lembra do ar de espanto que fez no dia em que ele lhe perguntou:
- Mãe, onde estão “As Naus”?
Nem percebera.
- Onde está o quê?
- “As Naus”, mãe. Aquele livro do Lobo Antunes.
Não quis mostrar demasiado o seu espanto, o rapaz ainda era capaz de se arrepender, e tirou-o da prateleira. Tinha estado muito recentemente a pôr a sua estante em ordem, sabia onde o tinha colocado.
O filho pegou no livro, enfiou-se pelo quarto, fechou a porta e lá ficou.
Nos dias seguintes “As Naus” lá continuavam na mesa de cabeceira. Um dia achou por bem voltar a pô-lo na prateleira.
À noite, o filho, meio zangado:
- Mãe, qu’é das “Naus”?
Pelos vistos a leitura do romance entusiasmava-o.
Um dia arriscou:
- Estás a gostar das “Naus”?
Foi a vez de ele a olhar espantado.
- Das “Naus”?
- Sim, do romance do Lobo Antunes.
- Ah!!
Foi um enorme “Ah” que se devia ter ouvido pela casa toda.
Depois foi buscar o livro e abriu-o na primeira página, onde se viam uns números escritos a lápis.
- Tás a ver, mãe... É que há dias, quando tu andavas a fazer a arrumação dos livros, a Teresa ligou e eu precisava de tomar nota do número do telefone dela. E isto era a única coisa que eu tinha à mão. Como nunca sei o telefone dela, preciso sempre de ver aqui.
Ainda pensou em dar-lhe uma agenda – mas desistiu. Pegar num livro era bem melhor. Até podia ser que ele se entusiasmasse e passasse da primeira página.
Como de resto veio a acontecer, não por causa de “As Naus” mas por causa de uma namorada que lhe disse:
- Ou tu lês o que eu leio, ou nada feito.
Casaram, são muito felizes, têm 5 filhos.
( “As Naus” continuam com o número de telefone escrito a lápis, já um bocado sumido, que os anos não perdoam.)

«Activa» de Agosto de 2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

FÉRIAS GRANDES


Por Alice Vieira

JÁ NÃO sabia as vezes que tinha feito, desfeito e refeito a mala.
- Raio de tempo… --murmurou.
O marido largou o jornal e as palavras cruzadas e sorriu:
- Ninguém te entende…Se chove é porque chove, se faz sol é porque faz sol…
Deixou-se cair no sofá. Não era nada disso e ele sabia.
- O que eu queria era o tempo certo. Fiável. Dantes, quando íamos de férias no verão, levávamos roupa leve, um guarda-chuva, vá lá, por mera precaução, mas nunca enchíamos a mala de camisolas, casacos, meias…
No verão anterior nunca conseguira largar o casaco de fazenda. Mesmo as pessoas daquela praia do norte, habituadas a pouco calor, diziam que nunca se lembravam de um tempo assim, o vento a levar tudo atrás, tempestades de areia, as pessoas dias inteiros enfiadas em casa. Lembra-se até que a Goretti, amiga de há muitos anos, lhe tinha telefonado a dizer “se quiseres lareira, arranja-se!”
Só por vergonha não aceitou.
- O que eu queria…
- O que tu querias – riu o marido -- era ser criança, confessa! Quatro meses de férias, um verão que nunca mais acabava, as ”férias grandes” dizíamos nós, sem preocupações nenhumas…Mas isso, minha querida, isso era o paraíso, e já devias saber que, quando nos tornamos adultos, os paraísos desaparecem.
Regressou às palavras cruzadas, repetindo:
- Era mesmo o paraíso.
Ela voltou a enfiar mais umas camisolas na mala.
 Sempre que o verão aparecia no calendário (e, cada vez mais , só mesmo no calendário) vinha-lhe aquela estúpida saudade da infância, ela que nunca tinha saudades de nada, muito menos da infância, ficava amarrada à recordação da quinta, do grande plátano diante da casa, da ruazinha orlada de cedros que levava ao muro que dava para a outra quinta, onde vivia a família do António.
O António vivia sempre enfiado lá em casa, lia os números atrasados da “Mecânica Popular” que os irmãos dela colecionavam e iam deixando na quinta, quando chegava a hora de voltar para Lisboa, e fazia coisas complicadíssimas com as peças do Meccano.
- Hei de ser engenheiro…-- garantia ele
Mas houve um dia em que ele largou a revista e o Meccano e lhe disse:
- Vamos dar uma volta.
Os pais tinham saído, a caseira andava distraída no galinheiro, os irmãos tinham pegado nas bicicletas e desaparecido.
Foi na ruazinha dos cedros que então o António lhe perguntou:
- Queres ser minha namorada?
E ela sem saber o que responder, porque acabara de fazer 12 anos e nunca tinha tido um namorado.
Mas durante aquele verão foram namorados.
E foi um verão muito quente, e os dias eram enormes, e as noites parecia que ardiam.
Até que um dia o pai chegou muito zangado a casa, porque tinha ouvido não sei o quê no café, mandou a mãe fazer as malas e voltaram para Lisboa mais cedo do que era habitual. Nunca o pai lhe disse o que acontecera, mas a verdade é que ela nunca mais voltou a ver o António, que nas férias seguintes já não morava naquela casa ao lado do muro da rua dos cedros.
Às vezes dá consigo a pensar no que lhe terá acontecido, se será engenheiro, se terá emigrado, se estará casado e pai de família. Como era possível as pessoas desaparecerem assim das nossas vidas.
Deve ter suspirado com muita força porque o marido perguntou:
- Disseste alguma coisa?
Não respondeu.
Pensava ainda na palavra “paraíso”.
-
«Activa» de Julho 2012

domingo, 8 de julho de 2012

A PRAIA, HÁ MUITOS ANOS

Por Alice Vieira

MUITAS vezes penso como foi que nós – ou seja, todos os que já temos para lá de 50 anos – conseguimos sobreviver.

Como foi que conseguimos ser crianças, adolescentes, andar na escola, aprender. Como foi que conseguimos ser gente sem nos terem levado ao psicólogo. Como foi que crescemos mais ou menos saudáveis, sem ficarmos traumatizados por esse tempo pré-histórico em que – segundo os padrões de hoje – nada havia.

Para vocês deve ser praticamente impossível imaginar um mundo sem telemóveis, sem computadores, sem Power-points, sem tv interativa, sem downloads, sem i-Pad ou i-Pod, ou i-Outra Coisa Qualquer. Um mundo sem discotecas, sem mochilas às costas, sem inter-rails, sem férias em Lloret del Mar, sem Erasmus.

Até a mim – juro – me custa a acreditar.

Mas existiu.

E sobrevivemos.

E fomos tão felizes como vocês. Só que de outra maneira.

Quando chegam os meses de verão, por exemplo, lembro-me das minhas idas à praia, quando eu era muito criança. Vivíamos perto de Sintra mas, não sei porquê, os adultos lá de casa não seguiam, como destino comum de quem vivia naqueles lugares, para a Praia das Maçãs.

Não.

Armavam-se como se fôssemos para uma expedição para o deserto, e marchávamos para a Praia do Guincho.

Há 60 anos, a Praia do Guincho não existia. Ou seja, existia um imenso areal deserto, um mar bravo de meter medo ao susto, dunas onde os pescadores tinham construído umas minúsculas casotas para se abrigarem em caso de tempestade maior – e mais nada. Rigorosamente mais nada.

Nem pessoas, evidentemente, a não ser os pescadores na sua faina.

Ah, por acaso havia também um barracão mal amanhado no cimo das arribas, junto à estrada, que era uma espécie de restaurante de um senhor galego chamado Muxaxo, que gostava muito de nós porque éramos os únicos a descer à praia (e se era complicado descer por aquelas rochas até chegarmos ao areal!).

Fazia sempre muito mau tempo no Guincho. Mesmo quando fazia bom tempo no resto do país. Muito vento, muito frio e — nunca percebi porquê – enxames de abelhas desvairadas a atacar os invasores…

Então os adultos lá de casa, todas as manhãs, antes de sairmos, telefonavam para a barraca do Sr. Muxaxo para saber como estava o tempo. E o Sr. Américo ou a Josefa (que eram os únicos empregados) lá nos serviam de boletim meteorológico.

Mas mesmo que as precisões não fossem das melhores – raramente eram… – a gente marchava para lá. Era preciso haver uma tempestade muito, muito, mas mesmo muito grande para desistirmos. (E não, os adultos lá de casa nunca pensaram que podíamos apanhar resfriados ou gripes. E a verdade é que nunca apanhámos.) Connosco marchavam também mantas, cadeiras de verga, casacos, repelentes de insetos, mas não me lembro de alguma vez termos levado protetor solar.

As onze da manhã eram o ponto mais dramático do dia. Nós, os miúdos da casa, até tremíamos, mas nem pensar em fugir ou dizer que não.

Era a hora em que chegava o Sr. António.

O Sr. António pescava robalos, que vendia aos adultos da casa e, depois de feito o negócio, olhava para nós, esfregava as mãos e dizia “vamos lá a isto”.

E nós todos íamos atrás dele até à beira mar. Punha-nos em linha e depois, com uma das mãos apertava-nos o nariz e com a outra rodeava-nos o corpo e atirava-nos ao mar – e a gente que se desenvencilhasse. Lá longe, ao abrigo da barraca de lona, os adultos da casa nem se dignavam olhar.

Gritávamos, esbracejávamos, engolíamos litros e litros de água salgada, faltava-nos o ar -- mas foi assim que nós todos aprendemos a nadar na perfeição. Porque quem escapa ao mar do Guincho escapa a todos os mares do mundo.

E nenhum de nós ficou traumatizado.

Vou muito pouco ao Guincho, mas tenho sempre muitas saudades desse tempo, e sobretudo do sorriso do Sr. Américo e da Josefa. Nunca me lembro deles sem estarem a sorrir para nós. Sorriam muito, sorriam sempre.

 Hoje o progresso dá-nos muitas coisas melhores – mas acho que as pessoas sorriem menos.

(In “Audácia”, revista juvenil dos Missionários Combonianos, número de Junho 2012)


sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mário Castrim

Por Alice Vieira 
AMIGOS 
Mário Castrim morreu há dez anos. Lembrando a data, a Editora Caminho vai apresentar dois dos seus livros –a reedição de “ESTAS SÃO AS LETRAS” e “VIAGENS NA CASA” – no próximo dia 20 deste mês de Junho, às 18h30m, na Livraria Bucholz.
A apresentação será feita pelo escritor António Carlos Cortez, e haverá amigos que irão recordá-lo.
Gostaríamos que fosse um encontro festivo e que, tanto os que foram seus amigos, como os que já não o conheceram, nos acompanhassem. Esperamos por todos (e não, não há jogo de futebol nesse dia…)

sábado, 9 de junho de 2012

FICA…FICA…FICA…


Por Alice Vieira

AQUILO andava a matraquear-lhe na cabeça, dias e noites a fio, ela nem acreditava nessas coisas de sonhos e presságios, e mais não sei o quê, mas a verdade é que tinha de haver qualquer razão, não podia ser por acaso que uma pessoa, de repente, desatava a recordar um filme visto há mais de 50 anos, nem sequer um grande filme, nada de “ we’ll always have Paris” ou “you can whistle, can you?”, nem sequer “me tarzan, you jane”, filme anódino de que nem recordava o título.
Até tinha ligado ao Francisco a perguntar que filme seria, mas ele não lhe deu grande ajuda, preocupado em arranjar verbas para o novo projeto.
A bem dizer, ela não se recordava de nada. Nem dos atores, nem da história. Nada de nada, a não ser aquela cena (seria no princípio da história? Seria no fim?) e aquela palavra, continuamente repetida: “fica, fica, fica!”.
Vê a cena nitidamente, e a preto e branco. A mesa da cozinha, os pais, os três filhos, e o que estava para ser adotado. Lembra-se que era um miúdo muito complicado, muito difícil de aturar, e muito doente (que doença é que não recordava, mas andava de muletas), e aquela era a altura em que se ia decidir se ele ficaria a viver com eles ou não. Havia um jarro para onde cada um tinha deitado um papelinho com o seu ”voto” : “stay” (fica) ou “go” (vai). Depois, um deles (já não recorda qual),entregou a jarra ao miúdo, para que ele desdobrasse os papelinhos e lesse a sentença.
O miúdo olha para os papelinhos mas não reage.
“Só sei ler termómetros”, murmura.
Então, sem qualquer troca de palavras, sem sequer uma troca de olhares, uma das outras crianças faz o trabalho. Pega nos papelinhos e vai lendo em voz alta, à medida que os desdobra, “stay…stay…stay…” – enquanto a câmara foca o que realmente está escrito em todos: “go…go… go..”
Lembra-se de ter chorado que nem uma madalena a ver aquilo. Quase tanto como com a morte da mãe do Bambi.
Mas agora já não é criança, e não entende por que, de repente, aquilo não lhe sai da cabeça.
Foi então que ele ligou.
Ela teve dificuldade em conhecer-lhe a voz, mas de repente lembrou-se de que o Sporting tinha ganho, e ele devia estar em casa de amigos a festejar, e já devia ter bebido um pouco mais, como sempre fazia, no tempo em que ainda viviam juntos.
“Se eu tivesse vergonha na cara nem lhe respondia”, pensou, mas a verdade é que lhe respondeu, como se nada se tivesse passado naqueles anos todos em que ele não dera sinal de vida.
E ele, com a voz doce que o álcool sempre lhe dava, a dizer coisas parvas, a perguntar por amigos de há anos, e ela só a ver a cena do filme, e a repetir “vai…vai…vai…”,mas lá bem dentro dela a vontade de dizer “ fica…fica…fica…” , e ele nem merecia nem nada, não era doentinho nem andava de muletas nem ia ser adotado.
Mas pela janela vinha o cheiro das laranjeiras do quintal, e era verão, e o mundo estava todo lá fora.
Acabaram por combinar um jantar lá em casa ( “fica…fica…fica…”) para dali a dias.
Deu consigo a rir que nem uma doida e, depois dos beijinhos da praxe e do “ligo amanhã”, tinha tantas saudades tuas”, desliga, abre o computador e manda um mail ao Francisco:
“ainda está de pé o convite para escrever a tal telenovela?”
- 
In “Activa”, Junho 2012

sábado, 2 de junho de 2012

O CHEIRO DO JASMIM


Por Alice Vieira
 
ERA SEMPRE a mesma coisa, estava pior que os cãezinhos de Pavlov, e já tinha tido mais que tempo de se esquecer de tudo isso.
Toda a gente morta há já um ror de anos, e ela sempre a lembrar-se do mesmo.
A rapariga a deitar-lhe o chá na chávena e ela, mesmo sem querer, a recusar, “não, jasmim não!”
É por isso que lá em casa as pessoas dizem que ela é alérgica ao jasmim, coisa que a nora, vegetariana de nascença, não entende e, nos primeiros anos de pertencer à família, ainda protestava “ nunca vi ninguém alérgico ao jasmim!”.Como ninguém nunca lhe respondeu, acabou por desistir. Mas, ao fim destes anos todos, ainda a olha com desconfiança, e abana a cabeça de cada vez que entram num restaurante chinês e ela recusa o chá.
Alergia. Claro. Que outra explicação poderia dar que os outros aceitassem sem lhe chamarem doida?
Mas sabe que nunca poderá esquecer aqueles enormes dias de verão, a voz cantada de Joaquina (Quininha, era assim que elas todas chamavam àquela tia mais nova, naquele tempo em que as meninas usavam diminutivos e laços na cabeça), eles todos na esplanada diante da praia, à espera de se irem vestir para o jantar.
Era também no tempo em que as meninas acompanhavam a família nos hotéis de verão e tinham de se vestir a preceito para o jantar.
E pôr novas fitas no cabelo.
Dia e noite o ar tinha sempre o mesmo cheiro.
Cheiro a jasmim, explicava Quininha.
Um cheiro que rebentava de todos os jardins, que entrava nas pessoas, que se entranhava na roupa, que se misturava com as gargalhadas de quem acreditava que era impossível envelhecer um dia.
Quininha dizia então:
“O jasmim é que é o culpado das desgraças que por aí acontecem.”
Ela era muito pequena e não percebia por que é que a tia dizia aquilo, e por que é que as irmãs mais velhas desatavam a rir. Desgraças eram desgraças, e na catequese estavam sempre a repetir que Deus castiga quem se ri das desgraças dos outros.
Quininha sorria e continuava na dela:
“Este cheiro a jasmim é o diabo…Quando entra em nós, já não podemos fazer nada...”
Uma vez ela olhou para a tia tão fixamente que esta achou-se na obrigação de explicar melhor, tia é tia.
“ Nunca te chegues perto, Joaninha! Nunca! O cheiro do jasmim é veneno!”
“Veneno dos que fazem muito mal?”
“Veneno dos que matam”.
E as irmãs riam, riam, e caíam as fitas do cabelo, e a mãe fingia que não ouvia, e a avó, tentando disfarçar um sorriso, olhava para Quininha e murmurava:
“ Ai, rapariga, não tens mesmo juízo nenhum…”
Depois passaram muitos anos, as pessoas foram descobrindo que afinal se envelhecia, que o mundo não era já aquele imenso jardim de verão diante do mar, com o cheio a jasmim a prolongar a felicidade.
As pessoas foram morrendo, outras nascendo. E ela, instintivamente, recuando sempre, quando se falava em jasmim.
Como os cãezinhos de Pavlov.
 Um dia, no verão, disse para a filha:
“O jasmim é que é o culpado de muitas desgraças que acontecem!”
Mas os tempos (e as filhas) eram diferentes. E Elsa respondera que a comunicação social, essa sim, essa é que era a culpada de toda as desgraças.
Nunca mais falou em jasmim.
A não ser para dizer que é alérgica, quando tentam encher-lhe a chávena de chá.
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 In “Activa”, Maio 2012

terça-feira, 15 de maio de 2012

O BAR DO RICK

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Por Alice Vieira

QUANDO eu era nova lembro-me de ter lido um romance do Augusto Abelaira em que uma das personagens, homem sem tempo para lides caseiras e com muitas outras coisas em que pensar, jantava sempre dois ovos estrelados, comidos diretamente da frigideira.
De cada vez que estrelo ovos, lembro-me sempre disso, como se fosse uma cena transcendente e extraordinária, e fico com uma vontade doida de reler o livro. (Mas nunca tenho tempo, porque há sempre montes de livros que temos de ler, e as releituras vão ficando para tempos cada vez mais distantes).
Mas a verdade é que há coisas assim, meio tontas às vezes, que estão sempre a vir à nossa cabeça, sem qualquer razão aparente.
Lugares imaginados de que lemos tão rigorosas descrições em livros que acreditamos que existem mesmo a sério, e prometemos visitar assim que pudermos.
Frases perfeitamente banais que recordamos de alguns filmes.
Cantos de ruas sem nada que as distinga de outras, mas que ficam na nossa memória.(Havia uma rua no Bairro Alto, perto do antigo jornal “Diário de Lisboa”, que cheirava a açúcar queimado. É sempre esse cheiro que me entra pelo nariz quando lá passo ainda hoje – e ela não cheira a nada, segundo juram as outras pessoas.)
Ou ainda aqueles sítios onde nunca estivemos, mas reconhecemos assim que lá chegamos. ( Isto tem um nome científico, é a sensação de “déjà vu”, ou seja, de já termos visto aquilo)
Há muitos anos ia eu numa excursão a Marrocos. Fazia um calor insuportável, era Agosto. Ninguém, no seu juízo perfeito, vai a Marrocos em Agosto. Mas eu fui, e aguentei aquele forno com a ideia de, no fim da viagem – assim estava no programa – acabarmos em Casablanca.
Vocês são todos muito novos, mas os velhotes como eu nunca poderão esquecer um filme dos anos 40 chamado “Casablanca”. Para muitos, foi e continua a ser o filme da nossa vida.
Porque se estava em guerra e aquele era um filme contra a guerra, e ganhavam os bons.
Porque Lisboa aparecia como um destino ansiado por todos : o lugar onde se podia apanhar um avião para a liberdade.
Porque o Humphrey Bogart , que se chamava Rick e tinha um bar, acendia cigarros a olhar para a Ingrid Bergman, que se chamava Ilse, e não se queimava, e murmurava em voz rouca “here’s looking at you, kid”, qualquer coisa como “ estou a olhar para ti, miúda”, e recordava Paris como lugar único de amores eternos .
E porque Sam tocava ao piano “As Time Goes By”, no bar do Rick, e quando entravam os alemães cantava-se a “Marselhesa” e nós nunca tínhamos visto nada assim, e ficávamos com vontade de fazer muitas coisas heroicas e de nunca deixar que os maus vencessem.
Durante anos e anos tinha sonhado ir a Casablanca ver o bar do Rick. Sabia exatamente onde ficava, tinha na memória as suas paredes brancas, o portão de ferro forjado, os velhos sentados cá fora.
Assim que a excursão chegou à cidade, não pensei noutra coisa.
O guia era espetacular . Sabe-se lá porquê, tinha simpatizado comigo e com mais um casal inglês muito jovem, e, no fim do seu horário de serviço, despia a djellaba , vestia-se à europeu, e ia connosco ver coisas que não vinham nos programas turísticos.
“Leva-me ao Bar do Rick!” – pedi-lhe, logo na primeira noite em Casablanca.
Nunca esquecerei a gargalhada que lhe ouvi.
“Outra!...” – repetia ele, sem parar de rir.
Quando finalmente se recompôs, informou-me que todos os estrangeiros – sobretudo as estrangeiras…- assim que chegavam a Casablanca, vinham doidas para se enfiar no bar do Rick, possivelmente à espera do fantasma do Humphrey Bogart a acender cigarros sem olhar para eles, a sonhar com um avião para Lisboa, e para sempre preso à eternidade de um amor em Paris.
“O pior…”, explicou ele, “o pior… o pior é que não há nenhum bar do Rick em Casablanca! Nem nunca houve!”
“Como não há! Claro que há! “, insistia eu. “Sei perfeitamente onde é, acho mesmo que até passámos por ele no autocarro, quando chegámos esta tarde!”
Mas a verdade, a dura verdade, é que não havia mesmo.
Tudo tinha sido uma reconstituição. Tudo tinha sido filmado nos estúdios americanos, onde o filme era realizado.
Acho que nunca me recompus da desilusão. Pior: acho mesmo, à distância de mais de trinta anos, que o guia me enganou escandalosamente, e que, lá bem pelo meio das sinuosas ruas de Casablanca, o bar do Rick continua ainda agora à minha espera, com os acordes da Marselhesa a darem-nos ânimo para fazermos muitas coisas heróicas e para que os maus não vençam.

Revista juvenil “Audácia”, Maio 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Rainha precisa-se


 Por Catarina Fonseca

O MUNDO tem mais uma rainha. Chama-se, como qualquer plebeia ali da Musgueira, Estela Sílvia (o Sílvia ser da avó não é desculpa) e é sueca. Isto para vos dizer que, estando eu nessa altura na Suécia, tiveram que me amarrar para não comprar todas as revistas – em sueco – com a história da Lilla (pequena) Estelle.
À vinda, fiquei na sala de embarque a remoer em duas coisas: por que é que eu, uma republicana convicta, era tão fã de realeza, e porque é que não havia uma sex-shop no aeroporto. Já estava imaginar uma data de suecos em delírio a embarcarem com bonecas insufláveis e algemas de renda. Bem, não se entusiasmem que o tema não é esse.
No tempo da minha avó, ela e as amigas votavam todas as semanas na Maria de Lurdes Resende para Rainha da Rádio. E eu era obrigada a ler a ‘Hola!’ em voz alta de fio a pavio, revista que começava invariavelmente com um artigo com a princesa Carolina en um rincón de su hogar.
Hoje não temos nada assim. Falta-nos isso, que não era pimbice, era a nossa necessidade de rainhas. A nossa necessidade de cor-de-rosismo na vida. De vestidos e tiaras e princesas Disney. Temos a ‘Caras’, mas não é a mesma coisa. E temos os Óscares, mas é pouco, porque os atores e atrizes não estão suficientemente longe de nós para funcionarem como sonho. São só um sonhozinho. Assim pequenito, como a Lilla Estela.
O T.S. Eliot dizia que a Humanidade não consegue aguentar demasiada realidade. Às vezes, sinto que é isso que temos agora. Demasiada realidade. Já não aguento revistas a mandarem-me poupar e a dizerem-me como é que eu hei de ser feliz mesmo assim pobre como estou, ou sobre pessoas que deram a volta à crise criando fantásticos negócios.
Quero a rainha a que tenho direito. Não quero uma Lilla Estela adotada. Tenho vontade de raptar a Lilla Estela aos suecos.
Depois li um artigo espanhol sobre japoneses sem sexo. Um em cada três japoneses não tem sexo não porque não haja japonesas, mas porque, basicamente, dá trabalho. Dá mais trabalho satisfazer a namorada do que passar horas a ver filmes porno, jogar jogos de vídeo porno ou, cúmulo da originalidade, ir a Cafés de Gatos (literalmente, não gatos como o Bradley Cooper) apaziguar a falta de relações humanas acariciando felinos. Também para estes japoneses o mundo é demasiada realidade, mas responder com uma substituição total não foi uma boa ideia...
Resultado: as japonesas estão a dar em malucas (os japoneses presume-se que já tenham dado, há muito tempo) e as ocidentais fazem a si próprias a pergunta: será que este cenário é uma exceção ou uma previsão?
Isto aparentemente não tem nada a ver com rainhas porque ainda não se fez nenhum documentário sobre rainhas sem sexo (imaginem as dificuldades burocráticas, se para apanhar a princesa Carolina en un rincón de su hogar já não deve ter sido fácil) mas mostra como fantasia a mais também não é nada bom. Claro que mostra muito mais como temos cada vez mais dificuldade em nos darmos aos outros, em percebermos que não somos perfeitos e não podemos exigir isso a ninguém, mas que ainda não se inventou nenhum jogo de computador que substitua a pele (e não estou a falar da pele de gato).
Conclusão: cuidado com as fantasias que arranja, mas não deixem de as ter, porque neste mundo de troikas, é isso que nos protege. E sejam românticos: realizem o sonho de alguma mulher (ou homem) que conheçam e mandem-lhe flores (não virtuais). E boa primavera.

«Passiva» de Abril de 2012

sábado, 28 de abril de 2012

O fim do mundo (e dos feriados, que é pior)


Por Catarina Fonseca

ÀS VEZES, uma pessoa está sem inspiração. Acordei assim. Raio de país mais cinzento. Raio de mês mais vazio. Há dias que mais vale voltar para a cama. Tristemente, este não foi um deles.

Corri o Facebook à procura de iluminação. Nada. Tirando fado, crise e futebol, nada. Então lembrei-me da secção que o Miguel Esteves Cardoso tinha no ‘Independente’. Chamava-se ‘Encomendação das almas’, onde os leitores lhe davam o mote.
A má notícia foi quando descobri que ninguém se lembrava da ‘Encomendação das Almas’. Os cotas têm memória curta. O Google ainda não era nascido. E os mais novos nem sabem o que foi o ‘Independente’. A boa notícia, é que pelo menos assim podia plagiar à vontade. Pedi então a amigos e conhecidos que me ‘encomendassem’ qualquer coisinha.
Prestimosamente, assim fizeram. Passei a tarde a rir. Houve temas a sério: por que é que as mulheres riem mais do que os homens; pessoas que foram morar para o campo; porque é que se constroem tantas igrejas que parecem hospitais psiquiátricos finlandeses. Houve temas a gozar com a minha cara e o meu drama: Como passar uma tarde de Inverno a colecionar selos; A plantação de cebolas e os fundos comunitários do QREN; A literatura búlgara na segunda metade do século XVIII; como fazer mergulho na costa da Jordânia; A importância do sudoku nas salas de embarque dos aeroportos; porque é que as mulheres não sabem mudar o pneu de um carro (hmmm. E quantos homens saberão?); A vida e obra de Ângela Merkel em quatro volumes; Uma ode ao António Zambujo; Uma ode ao Jerónimo de Sousa; As amantes do ministro húngaro dos negócios estrangeiros; O impacto da Bimby nos homens que vivem sozinhos.
Quando a malta começou a votar em massa nas cebolas e nas amantes do ministro húngaro, achei que era tempo de falar daquilo que mais oprime os portugueses: o roubo dos feriados.
Não sei que raio de contas eles fizeram, mas não me parece que quatro dias façam um rombo assim tão grande na economia do país. É tão ridículo como a meia hora de trabalho extra.
Quem é que queremos enganar? Toda a gente sabe que ninguém passa o 5 de Outubro a meditar na República ou o 1 de Dezembro a dizer ‘ai que bom que não somos espanhóis’, e contam-se pelos dedos os fiéis que celebram o Corpo de Deus. Mas a malta precisa de balões de oxigénio para ir mantendo a sanidade num país onde ela não é muito acarinhada.
O que interessa é que isto é o princípio do fim: qualquer dia tiram-nos os 25 de Abril (nada de instigar o povo à revolução), o 1º de Maio (o dia do trabalhador deve ser passado, precisamente, a trabalhar), o Carnaval (já chega de palhaçadas), o Dia de Portugal (qual Portugal?) e todos os feriados religiosos (afinal, isto é um Estado laico) exceto o Natal, que é bom para o comércio.
De qualquer maneira, nada disto interessa. A minha colega Bárbara que fez o artigo do fim do mundo acaba de me dizer que não adianta nada o saquinho dos terramotos porque isto vai mesmo tudo a eito, e nada vai voltar a ser o mesmo. Ó céus. E achava eu que janeiro era um mês sem graça.
«Passiva» de Janeiro de 2012

terça-feira, 24 de abril de 2012

A GUARDIÃ DA CASA

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Por Alice Vieira

DE VEZ em quando tenho mesmo de arrumar livros.
É trabalho difícil e moroso porque, mesmo que à partida eu pense “vou só arrumar as estantes da entrada”, pego num livro, olho para ele e digo cá para mim, “os deste autor estão todos na estante da sala”- e lá vou eu com ele para a estante da sala mas, para o conseguir encaixar, tenho de desalojar para aí uns dez, e onde é que há lugar para eles? Se calhar só na estante do corredor – e, de repente, dou comigo com os livros das estantes da entrada e da estante da sala e da estante do corredor todos no chão, e eu no meio sem saber para onde me virar.
Daí que o mais habitual é os meus livros amontoarem-se ao Deus dará mas – coisa estranha! – sei sempre onde está aquele de que preciso.
Mas dizia eu que de vez em quando há que fazer arrumações.
Fica bem, os filhos aplaudem (“ó mãe, até que enfim, isto era uma caos!”), a neta mais nova torce o nariz (“ó Vó, e agora onde é que está o “Cuquedo”?! “O “Cuquedo” é um livro que ela sabe de cor e ama de paixão e devia ser leitura obrigatória para todos os menores de 6 anos…)
E, como sempre acontece,nestas arrumações encontramos sempre qualquer coisa que julgávamos perdida, ou de que já não nos lembrávamos.
Foi o caso.
No alto da última prateleira da estante da entrada, aonde raramente vou( o meu metro e 50 não chega, e nem sempre dá jeito ir buscar o escadote à arrecadação) dou com uma jarra minúscula de Vista Alegre, fundo branco e flores cor de rosa pálido, donde se ergue uma espiga de trigo.
Há quantos anos esta espiga ali está! Ressequida, parece quase daquelas espigas falsas que agora é moda meter pelo meio dos ramos de fores, juntamente com joaninhas de plástico e ananases anões.
Mas esta é verdadeira.
Veio comigo de S. Paulo há 24 anos – e ainda ali está.
Era Agosto, e eu estava, com muitos outros escritores portugueses, num Salão do Livro. De repente as notícias da rádio, e depois as das televisões, sobrepuseram-se a tudo o mais: Lisboa estava em chamas.
Com todo aquele mar a separar-nos, as notícias eram desencontradas, não se falava do Chiado, falava-se de Lisboa.
Lisboa inteira ardia – era assim que a notícia chegava aos nossos ouvidos.
Era num tempo em que ainda não se sonhava com telemóveis, e as ligações telefónicas eram complicadas.
Lembro-me de que estava numa cantina a jantar.
Lembro-me de que eram quase duas da manhã.
Lembro-me de que todos estávamos de cabeça perdida, a querer ir embora dali o mais depressa possível.
Lembro-me de me levantar da mesa e dizer “vou já ao hotel e de lá para o aeroporto”, e todos a berrarem que era uma loucura, sozinha àquela hora nas ruas de São Paulo, que esperasse, mas eu não queria esperar nem mais um minuto e saí.
Andei algum tempo à procura de táxi – quando de repente vejo um negro, enorme, meio esfarrapado, a caminhar, de braços abertos, na minha direção.
Pensei “é agora, já nem vou chegar a Lisboa!”, e o negro cada vez se aproximava mais, e dizia qualquer coisa que eu não percebia, cambaleava, perdido de bêbado.
Chega junto de mim, a chorar e a tresandar a cachaça e a miséria. Põe uma mão no meu ombro (“é agora!...”) e estende-me uma espiga, que traz na outra mão.
- É para você, moça! É para você, porque Lisboa está a arder e eu estou muito triste! Leve! É para você…
Ainda hoje não sei como a espiga não se perdeu na barafunda da partida e na emoção da chegada.
Mas, se não se perdeu nessas terríveis horas de confusão, não é qualquer situação caótica de livros que a vai derrubar.
E coloco-a de novo onde sempre esteve.
A vigiar a casa.

Revista juvenil “Audácia”, Abril 2012

domingo, 15 de abril de 2012

QUE FAZEMOS DOS NOSSOS VELHOS?

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Por Alice Vieira

HÁ MUITO tempo que a minha mala não guarda cartas. Postais ilustrados, muitos – desde que aderi a uma coisa salvadora, chamada “postcrossing”, que me traz notícias de gente do mundo inteiro! (Quem estiver interessado, é só ver na net do que se trata)
Mas cartas? Desapareceram.
Ninguém tem tempo para as escrever.
Ninguém sabe já como elas se escrevem.
E — pior ainda — ninguém sabe para o que servem.
Mas eu ainda sou do tempo em que as cartas eram o modo como as pessoas comunicavam quando o que se queria dizer não cabia nos períodos (caros…) do telefone.
Jornalista de profissão há muitos anos, também ainda sou do tempo em que as pessoas escreviam muito para os jornais.
A protestar – muito.
A aplaudir – pouco.
A agradecer – quase nunca.
A pedir – quase sempre.
(E também havia um maluquinho que todos os dias ia ao “Diário de Notícias” para me dar flores murchas, retiradas de algum caixote do lixo, mas entregues sempre com um grande sorriso.)
E nós tínhamos tempo para isso. Para ler as cartas que nos mandavam (e para receber os maluquinhos que nos batiam à porta…)
Uma vez, em finais dos anos 60, poisava eu então num jornal, que já não existe, chamado “Diário Popular”, quando um velho leitor me telefona, dando conta de que uma (em tempos) grande actriz de teatro estava na miséria, sozinha numa cama de hospital.
Chamava-se Lina Demoel – e, embora eu já não a tivesse visto representar, conhecia o nome, sabia de toda uma vida de glória nos palcos, e daquelas extravagâncias que as estrelas faziam, o monograma gravado a ouro na porta do carro que guiava, fotografias ao lado de grandes nomes do music-hall francês, etc …
Escrevi então meia dúzia de linhas no jornal e – confesso -- nunca mais me lembrei do assunto.
E se hoje aqui o recordo é porque, de repente, me cai no colo – no meio destas arrumações de papelada que nos deixam a casa cheia de pó e a pele das mãos encarquilhada – uma carta enviada em meu nome para o “Diário Popular”, datada de 6 de Dezembro de 1969.
Escrita naquele papel com linhas que dantes se comprava nas papelarias propositadamente para cartas, numa letra trémula de pessoa de muita idade.
Assinava-a Lina Demoel.
Pedia desculpa por não poder ir pessoalmente agradecer-me a notícia e por isso me mandava aquela carta, onde me dizia : “ o seu apelo foi ouvido por tantos, tantos amigos, admiradores anónimos, colegas, tenho 169 cartas de todo o Portugal, América e Brasil, e estou-lhe imensamente grata por me ter proporcionado verter lágrimas de alegria no meio de toda a minha solidão e da dor da doença”.
Sorri, com a leitura daquela carta com mais de 40 anos (e de que, evidentemente, já nem me lembrava), achei graça àquele pormenor rigoroso das “169 cartas”, nem mais uma nem menos uma, e pensei que, se fosse agora, o mais certo era haver um chefe para me dizer “o jornal está cheio, não há cá tempo nem espaço para essas palermices, os leitores querem lá saber dessas coisas, ainda se fosse alguém da “Casa dos Segredos”…
Guardei a carta, pensei em como hoje em dia as relações entre as pessoas estão tão diferentes e, vá-se lá saber por que estranhas coincidências, um dos telejornais dessa noite deu uma notícia absurdamente chocante: desde o princípio do ano ( e este telejornal era de fins de Janeiro), dez pessoas tinham sido encontradas mortas em suas casas.
Em pouco mais de 20 dias, dez pessoas tinham morrido absolutamente sozinhas e sem ninguém dar por isso.
Dez pessoas que, pelos vistos, não faziam falta a ninguém.
Alguns vizinhos diziam que sim, que realmente há muito tempo não sabiam delas, outros nem isso – até que finalmente alguém se lembrou de avisar a polícia.
Que mundo é este em que nós vivemos, onde temos sempre tempo para as máquinas, e nunca para as pessoas que vivem ao nosso lado?
Como se as pessoas fossem objectos descartáveis, que se abandonam quando já não nos servem.
Há quanto tempo não visitamos velhos tios ou primos ou amigos?
Há quanto tempo não lhes telefonamos?
Com tanta campanha que se faz (e muito bem!) pedindo “ não abandonem os animais!”, penso que talvez não fosse má ideia fazer também algumas pedindo “não abandonem os velhos!”
Às vezes um simples telefonema, uma visita rápida, um toque de vizinho na porta (ou meia dúzia de linhas num jornal… ) podem fazer toda a diferença.

Revista juvenil “Audácia”, Março 2012

sábado, 7 de abril de 2012

OLHANDO O RIO

Por Alice Vieira

ELISA ENTROU no café porque era o único lugar onde lhe poderiam dizer onde ficava a rua. Teresa explicara-lhe tão à pressa a morada da casa nova que nem dera para entender.
Elisa pede uma bica, para não dizer que não faz despesa, mas o empregado também não sabe muito bem, é novo no café e não mora ali.
É então que o cliente de uma mesa ao fundo lhe dá as informações que ela pretende.
O homem levanta-se com dificuldade, deixa escapar um gemido, os ossos devem massacrá-lo, estica o braço para explicar melhor, vem até à porta arrastando muito os pés, e aponta-lhe a transversal que ela deve apanhar. É muito alto, ela tem de esticar o pescoço para o olhar de frente e agradecer.
Até deixou cair a carteira, quando o reconheceu.
Ele ainda esboçou um gesto para a apanhar, mas ela foi mais rápida, ”não se incomode!”
Só parou na esquina.
Como era possível.
Tinham-se conhecido há mais de 20 anos, e iam casar em Abril.
Ou melhor: tinham-se conhecido na festa de anos da Teresa e, depois de terem dançado umas seis vezes seguidas, ele tinha-lhe dito:
“Daqui a um ano, exactamente neste dia, e às 3 da tarde, vamos encontrar-nos no Alto de Santo Amaro, olhamos o rio, e depois casamos.”
Ela riu:
”Como no filme?”
“Como no filme, mas sem aquela parte da entrevadinha, claro! E com melhor vista!”
Tornaram a rir, e prometeram que não faltariam.
Embora tivesse a certeza de que ele nunca mais se iria lembrar, um ano depois, naquele dia e à hora marcada, ela subiu até ao Alto de Santo Amaro - onde evidentemente, ele não pôs os pés. Lembra-se de ter olhado o rio, de ter dado não sei quantas voltas à ermida, e esperado uma hora, apenas por descargo de consciência, porque sempre soubera que essas coisas só acontecem nos filmes.
E agora, vinte anos depois, vai dar com ele naquele café, a arrastar os pés, a gemer das artroses, com a voz entaramelada dos velhos, a falar para ela sem a reconhecer.
“Nem fazes ideia quem é que eu encontrei!” - exclama, assim que Teresa lhe abre a porta.
Teresa fica tão admirada como ela, também nunca mais o tinha visto, parecia que se tinha evaporado nesse dia há 20 anos e, nunca se lembra de o ter encontrado naquele café desde que se mudara para a casa nova.
“Se calhar encontraste e não o reconheceste! Está um velho caquético, que aflição!”
Riram ambas, “olha o que te esperava agora!”,e concordaram em que tinha sido uma felicidade ele não ter aparecido às três da tarde no Alto de Santo Amaro : Elisa tinha acabado por casar com o Carlos, que ainda era um bonito homem.
Ficam ambas naquela gostosa conversa de amigas em fim de tarde, enquanto no café o homem das artroses conta ao empregado que há uma data de anos tinha conhecido aquela fulana que entrara a pedir informações, até pensara em casar com ela.
“Então e agora não lhe disse nada?”, espantou-se o rapaz.
“Mas você está maluco? Combinámos um encontro para dali a um ano, coisa romântica, está a ver?, tínhamos visto um filme assim, e as mulheres gostam todas dessas coisas…”
“E ela?”
“Não apareceu. Eu ali feito parvo, no alto de Santa Catarina, mais de uma hora a olhar para o rio, e ela nada!”
Pagou a despesa, resmungou “as mulheres nunca são de fiar”, e saiu, arrastando os pés e gemendo das artroses.
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«ACTIVA» de Abril 2012

sexta-feira, 9 de março de 2012

HOMENS E DEUSES

Por Alice Vieira

POR TODA a parte se ouvem as mesmas notícias.
Nas rádios, nas televisões, nos jornais.
Atenas a ferro e fogo.
Ouço palavras como “Syntagma” e “Omonia” – e, de repente, estou sentada numa das suas esplanadas, bebo café, e os meus filhos, que ainda não têm dez anos, bebem copos de leite e riem porque vieram acompanhados de enormes copos de água, coisa que em Lisboa não acontece.

Acabámos de chegar de mais uma ida ao Parthénon, estamos cansados.
Aterrámos em Atenas há uma semana, no meio de um mês de dezembro claríssimo e de uma aragem quase morna.
Eles esmeram-se a dizer “kaliméra” quando entram na sala do pequeno almoço do hotel, e “kalispéra” no café onde lancham, embaralha-se-lhes um bocado a língua no “eukaristó”, acham divertido que à laranja se chame uma palavra tão parecida com Portugal, e não param de rir quando ouvem dizer que “sim” é “ne”, “uma coisa que se está mesmo a ver que é não!”

É a sua primeira viagem de adultos. Nada de Badajoz ou Mondariz, onde às vezes vão, de carro, nas férias grandes.
Desta vez meteu avião, transbordo para outro avião, e pisar uma terra de língua estranha, que eles conhecem apenas das histórias que o pai lhes conta.
Estamos em Atenas sem nenhum programa, na época baixa, com raros turistas. Não nos integrámos em nenhuma excursão, ninguém orienta os nossos passos nem gere o nosso tempo.
Por isso todos os dias subimos à Acrópole, aquelas escadas todas, as oliveiras de um lado e doutro, e eles a correrem por ali acima.
(Nem nos passa pela cabeça que um dia isso venha a ser proibido, e os visitantes tenham de ficar a olhar tudo de muito longe…)
Temos o privilégio de contar com a amizade de Teresa, uma guia só para nós – que fala um espanhol que conseguimos entender, e que os chama os dois pelo nome, assim que nos vê aparecer, depois de lhes ter explicado que têm ambos nomes de origem grega.
Senta-se no meio deles e fala-lhes de Péricles, e do que significa a palavra “democracia”. E fala dos heróis e dos deuses, e inventa histórias para todas aquelas pedras.
Para cada dia tem sempre uma história diferente.

Subir e descer a Acrópole dá-nos um cansaço bom, ao fim da tarde. E por isso nos sentamos na esplanada, o Soldado Desconhecido lá ao longe, a guarda nos seus trajos típicos.
Dentro de dias voltamos a casa, Dezembro vai a meio e há que preparar o natal familiar.
As crianças acabam de beber o leite, olham em volta, sabem que certamente não voltarão aqui tão cedo.
Então oiço a voz do meu filho, a perguntar:

- Ó mãe, onde estão agora os deuses?

Lembro-me que me ri, que a irmã (possivelmente com vontade de fazer a mesma pergunta…) olhou para ele com aquele ar sobranceiro que um ano a mais lhe permitia e resmungou “és mesmo parvo!”
E, na sequência das histórias de Teresa, devo ter inventado uma história qualquer num distante Olimpo, onde estariam todos a velar por nós, porque era esse o trabalho que competia a um deus. Sobretudo a um deus grego.
Mas agora, de repente, diante dos meus olhos tenho as imagens de Atenas a ferro e fogo, as praças Syntagma e Omonia transformadas em campos de batalha, ruas incendiadas, lojas saqueadas, feridos, a polícia a carregar em quem protesta.
E eu não sei por que de repente me lembrei destes dias de paz em Atenas, há mais de trinta anos, com um filho pequeno em cada mão.
Se calhar, apenas por que de repente também me apeteceu perguntar:

- Onde estão agora os deuses?
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«Tempo Livre» de Março de 2012

terça-feira, 6 de março de 2012

A OUTRA

Por Alice Vieira

DESLIGOU o telemóvel e ficou no meio do quarto, sem saber o que fazer.
Ouvia ainda a voz dele:

- Chego mais cedo. Temos de conversar.

Assim, seco. Nem sequer aquele habitual “estás onde?”, que nestes tempos de novas tecnologias substitui o velho e honrado “está lá?” Nem sequer o “beijinhos”, que nestes tempos de novas tecnologias substitui o velho e honrado “adeus, com licença”.
Uma frase curta e estava tudo dito.
Saiu do quarto e andou por ali, feita barata tonta, abrindo gavetas, fechando gavetas, tentando, por todas as maneiras, obter um sinal, uma pista nem ela sabia ao certo de quê.
Mas a verdade é que já há uns tempos o notava muito estranho. Chegava a casa e enterrava-se no sofá diante da televisão, pouco falava, chegou até a pedir-lhe um gin, ele que apregoava aos sete ventos que bebida a sério só mesmo vinho tinto.
Por várias vezes também tinha notado que ele desligava rapidamente o telemóvel se ela chegava perto, ou então mudava de conversa, naquele tom que as pessoas nesses casos habitualmente usam, voz mais alta, riso forçado - e que as denuncia imediatamente,…
Uma vez ia jurar mesmo que o tinha ouvido dizer qualquer coisa como “não a posso abandonar…”
Até as pernas lhe tremeram.

- Com quem falavas? – perguntou.

Ele inventou uma história qualquer de um colega de escritório, e ela fingiu acreditar.
Estava a acabar o jantar quando ele chegou.
De novo a secura do “temos de conversar”, e ela a limpar as mãos ao avental, a largá-lo na cozinha, e a segui-lo até à sala.
De repente vem-lhe à ideia uma situação semelhante, era ela miúda, o pai a chegar a casa e a chamá-la e à mãe, e elas diante dele, e ele a falar, a falar, e ela só a olhar para ele, sem ouvir uma palavra, a pensar que aquela gravata não condizia com a camisa, e que os sapatos precisavam de ser engraxados, e ele sempre a falar, e a mãe aos gritos, e depois ele a desaparecer pela porta da rua , e a mãe sem parar de chorar, e ela só a recordar a gravata velha e os sapatos sujos.

- Temos de conversar. – a voz do marido

Sentou-se à frente dele, esperando.
E então ele começou uma estranha e entaramelada conversa, de que ela não estava a perceber nada. Que aquilo tinha sido uma decisão difícil de tomar, ela que não pensasse que fora de ânimo leve porque não fora, mas que era a única solução.

- De qualquer maneira - disse - quero que saibas que esta será sempre a tua casa, e que tu terás sempre a última palavra. Se achares que isto é realmente uma loucura, que não vais suportar…
Parou, respirou muito fundo e acrescentou:

- Mas a verdade é que ela precisa de mim. Ela não diz nada mas, de cada vez que eu me venho embora percebo que aquilo que ela mais queria era que eu ficasse. Mas como isso não pode ser…Não vejo outra solução…

As pernas tremem-lhe, de repente deixa também de o ouvir, de repente também só tem olhos para a gravata que não condiz com a camisa, e para os sapatos que precisam de ser engraxados, só espera não desatar aos berros, não, com ela há-de ser tudo muito mais civilizado.

- Que solução? – consegue, finalmente, murmurar.

Ele olha bem para ela, tenta pegar-lhe na mão:

- A única que me pareceu possível: a partir do próximo mês, a minha mãe vem viver connosco.
«ACTIVA» de Março de 2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

DIA DOS NAMORADOS

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Por Alice Vieira

A FOLHA estava amarrotada, de tantos dias ali esquecida.

Uma folha A-4, dobrada em duas e depois em quatro e depois enfiada para dentro do bolso.

Ao alto à esquerda, a frase “amo-te”; em baixo, “Teresa”; ao alto à direita “mimos”, e em baixo “do Tiago”.

Tudo escrito num vermelho gritante, as palavras rodeadas de florinhas e passarinhos, e três risquinhos verdes a fazer de relva.

Marta deu uma leve, muito leve gargalhada.

“Só falta mesmo acrescentar “’jinhos, ‘jinhos, ‘jinhos!” como o outro para a Ofélia. Ai, meu Deus, como até as pessoas mais inteligentes ficam estúpidas quando S. Valentim de mete pelo meio…”

Abanou a cabeça, mas depois deu consigo a reflectir que no tempo de Pessoa ainda não se tinha inventado este maná do comércio urbano que é o Dia dos Namorados, a abarrotar de ursinhos, e coraçõezinhos e “amo-te fofa” por toda a parte, que horror…

Mesmo no seu tempo de jovem, S.Valentim ainda era desconhecido - e tinham passado muito bem sem ele. Santo António cumpria, melhor ou pior, a sua condição de casamenteiro, com a vantagem de os calores do verão ajudarem à festa.

Marta nunca se lembra de alguma vez ter jantado num 14 de Fevereiro à luz das velas, ou de nesse dia ter recebido flores. Os manjericos de Junho cumpriam a função, e esses nunca falhavam, com quadra ou sem ela.

Mas, tirando os arroubos poéticos das quadras de pé quebrado, nunca Santo António entrara, como São Valentim, pelo campo infindável dos sentimentos em ponto de rebuçado, a lamechice elevada a património imaterial da alma lusitana.

Voltou a olhar para a folha de papel.

Sorriu e concordou que nem era das piores.Com todo aquele floreado vermelho por entre as letras. Pelo menos.

- Isso é meu! — a voz de Teresa mesmo ao seu lado.

Marta não dera por ela entrar, naquele seu passo de gato silencioso, esgueirando-se por entre os móveis da casa.

- Estava no bolso do teu casaco. Encontrei por acaso.

Ia acrescentar “nem li”, mas não teve coragem.

Teresa pegou na folha, leu, releu, como se a tentar verificar se todas as letras e desenhos lá continuavam, voltou a dobrá-la e enfiou-a no bolso das calças.

Se fosse Matilde, o mais certo era armar-se logo ali um pé de vento, “tu o que queres é controlar a minha vida, saber com quem eu ando ou deixo de andar, mas já sabes que isso comigo não pega, já tenho idade suficiente para saber o que faço da minha vida”.

Mas Teresa nunca fora de dramas.

- Foi o teu namorado que te mandou isso? – perguntou Marta, e logo se arrependeu, toda a gente sabia que o namorado de Teresa se chamava Tiago, nunca tinha tido outro, de cabelo castanho, e, como ela dizia “ com olhos iguazinhos aos meus mas castanhos”, o que punha toda a gente a rir à gargalhada e ela a encolher os ombros sem perceber onde estava a graça, e sem se ralar muito com isso.

- Claro!

- Escreve bem, o teu namorado.

- Pois escreve.

-Pelo menos não te chamou “fofa”…

Foi então que o olhar de Teresa gelou.

Olhou bem para Marta e, muito pausadamente, perguntou apenas:

- Mas tu achas que se ele me chamasse “fofa” continuava a ser meu namorado?

Não deu tempo a qualquer resposta, e rematou a conversa:

- Já devias saber, avó, que não gosto de homens estúpidos.

E saiu da sala, cabeça bem erguida de todas as certezas dos seus sete anos.

«Activa» de Fevereiro 2012

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

VAI SER COMPLICADO

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Por Alice Vieira

“Vai ser complicado”, diz ela.

“Não importa”, diz ele.

A porta fecha, o genérico avança, ela limpa os olhos e desliga a televisão.

Não sabe quantas vezes já viu este filme. Mesmo assim, sempre que a televisão o anuncia, lá está ela, os olhos a seguirem tudo como se fosse a primeira vez.

Para já, porque gosta de rever aquela província tão miserável do norte da Argentina, onde trabalhou durante algum tempo e onde várias cenas foram filmadas; mas sobretudo pela cena final, onde sempre se revê, mas em desfecho diferente: ela a dizer “vai ser complicado”, e Afonso a virar as costas e a desaparecer pela escada. Mais tarde havia de lhe mandar um cartão: “ desculpa, mas não tenho estruturas”. Frase que, desde então, ela usa sempre que quer brincar com alguém que se furta a qualquer coisa que ela pede:”não digas mais: não tens estruturas!”. As pessoas riem, ficou uma espécie de “private joke” para os amigos mais chegados.

Mas diante daquela cena tudo volta sempre à sua memória: o alvoroço do reencontro, os primeiros meses de paixão, uma viagem a Paris, um fim de semana no Algarve, velhas músicas que recordavam juntos, os amigos a apontá-los como prova de que os sonhos de infância acabavam por se realizar.

Onde é que já ia a infância. Se é que existira alguma vez. Naquele tempo crescia-se muito depressa, aprendia-se muito cedo a viver uma vida de adultos, os sonhos ficavam adiados para melhores dias, se os houvesse.

Os pais franziram os olhos em relação ao namoro com Afonso, um disparate, asseguravam, contando pelos dedos das mãos as namoradas que ele era suposto já ter tido e deixado. “Por que hás-de tu ser diferente?”, insistiam. Entretanto apareceu o Renato, primo afastado, e apesar de a paixão ser fraca, acabaram por casar. “Têm tudo para dar certo”, garantiam os pais – que nunca entenderam aquela súbita separação, tantos anos mais tarde.

De resto, só mesmo os amigos mais chegados o souberam: Afonso voltara, e ela largara tudo para o seguir. Sempre fora mulher de arriscar, sem olhar para trás.

Festejaram o primeiro ano de reencontro num restaurante com vista para o Tejo, com direito a uma orquídea e cartão alusivo.

No segundo ano, Afonso desculpou-se com a necessidade de uma ida urgente a Espanha tratar de negócios.

No terceiro ano, esqueceu-se.

Foi então que ela se decidiu por um quase ultimato, farta de dias e dias em que ele não aparecia nem telefonava, datas que esquecia, comemorações que falhava. Não ia ser fácil, nem para um nem para outro, mas estava certa de que tudo se havia de resolver. Não lhe garantia ele tantas vezes que sempre a amara, durante aqueles anos todos de separação?

- Vai ser complicado — disse ela, preparando-se para rebater todas as possíveis dificuldades que ele iria apresentar.

Mas Afonso não disse nada. Abriu a porta e foi-se embora.

Semanas depois ela estava na plateia de um cinema, chorando que nem uma madalena diante de um filme argentino, onde a actriz, nos segundos finais, dizia o mesmo:

- Vai ser complicado.

Com um sorriso – tem a certeza – igual ao dela.

E com a resposta que ela sempre esperara ouvir de Afonso: “não importa”.

Agora faz tudo por esquecer. Mas, de cada vez que o filme se anuncia, tudo volta ao mesmo, as lágrimas, as saudades, os sonhos perdidos.

Só tem pena que a vida não seja um filme, com o genérico no final, para se perceber quem fez o quê.
«Activa» de Janeiro 2012

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

UM PAÍS PEQUENINO

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Por Alice Vieira

DEIXA-SE cair na cadeira que dá para o corredor, há-de dormir a viagem toda, porque está cansada de dias seguidos a subir e descer de aviões, faz rapidamente as contas e em dez dias já entrou e saiu de oito aviões, e ela já não tem propriamente 20 anos. Fora isto mesmo que dissera ao jovem que a viera acompanhar ao aeroporto, e ele atirara-lhe com o habitual “o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Ela sorriu e lembrou-se do Rafael, que fugazmente tinha passado pela sua vida e que, nos seus últimos anos, a essa frase respondia sempre “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.
“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, pensa, enquanto põe o cinto de segurança, e tira o livro da mala, embora saiba que nem o vai abrir. Sente-se embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, está quase a fechar os olhos.
É então que ouve a passageira do lado perguntar-lhe, num inglês arrastadamente americano, se é de Portugal ou se vai de visita.
É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.
Diz-lhe que sim, que é portuguesa e regressa a casa, e espera que a conversa fique por ali, dormir é tudo quanto deseja, e sonhar com os presépios com que vai inundar a sala assim que chegar, e o cheiro a canela a espalhar-se por todos os cantos.
Mas a americana não se cala, e sem ela perguntar nada vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha e os netos vieram para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e é o primeiro natal que estão longe, por isso decidiu-se a apanhar o avião. De Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino”, não é verdade?
Ela esteve para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas teve medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí e contentou-se em acenar com a cabeça.
A velhota vai embalada na conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, a bem dizer nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.
De repente, encara-a com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, how nice, how nice…!”
Ela tem vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desiste. Para quê. É agora que vai mesmo dormir, não aguenta mais, o patriotismo que fique para depois.
Só acorda no fim da aterragem.
Por um daqueles acasos da vida, há uma funcionária em terra que a conhece e lhe vem dar beijinhos e desejar feliz Natal – enquanto a velhota passa por elas, e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!...”
Para quê tirar-lhe as ilusões, ainda por cima em tempo de paz entre as pessoas.

ACTIVA de Dezembro de 2011

sábado, 3 de dezembro de 2011

UMA SEMANA NO CORVO

.
Por Alice Vieira

12 DE OUTUBRO, 4ª FEIRA

CHEGUEI ao fim do mundo.
Mal entrei neste quarto que vai ser a minha casa até à próxima semana, deixei-me cair em cima da cama, e ainda não percebo o que me espera. A única coisa que sei é que, desta estada terá de sair, mais tarde, o texto para um livro de fotografias do Jorge Barros.
Que me impôs um único requisito: que eu, que nada sei do Corvo, assim continuasse até aqui aterrar.
Nem me reconheço: eu que, de cada vez que parto em viagem, faço sempre um rigoroso trabalho de casa, leio livros, e googlo-me a uma velocidade impressionante – desta vez chego a uma terra de que apenas sei o nome.
Mas já percebi que, a haver um fim do mundo, é aqui.
No mesmo avião, e também para o Corvo, veio D. Manuel Martins, antigo bispo de Setúbal. Diz-me que o padre da terra, que ele nem conhece, precisou de ir tratar-se aos EUA e lhe telefonou a pedir que o substituísse uma semana. E ele veio.
Sou recebida na pista por um senhor que acarta com a minha mala, e logo me enfia para dentro de um carro que já viu melhores dias. Diz-me que é em casa dele que vou ficar, porque Outubro é o mês em que a ilha se enche de ornitólogos em cata de aves em trânsito, e é difícil arranjar camas vagas. De repente dá uma gargalhada, apontando para as minhas mãos desesperadamente em busca do cinto de segurança;
- Não há! Aqui no Corvo não se usa. Nem capacetes nas motorizadas, nem nada disso…
Olha para as nuvens ameaçando chuva e diz:
- O melhor é eu levá-la já ao vulcão. A gente aqui não se pode fiar no tempo, e se começa a chover e vem nevoeiro, nunca mais vê nada.
Percebo que o Jorge lhe deu instruções sobre aquilo que eu tenho de ver, e lá vamos, por caminhos estreitos e cheios de curvas.
No cimo do monte, o espectáculo é deslumbrante. A cratera de um vulcão, extinto há séculos, mancha os diversos tons de verde da vegetação e abre-se em várias lagoas, salpicadas de pequenas ilhas. É nas lagoas e nas turfeiras que fica armazenada toda a água das chuvas, que se infiltram na terra e vão circulando em ribeiras subterrâneas. Por isso por aqui se diz que “no Corvo a água cai do céu mas não nasce!”
Não há ninguém por perto. Barulho, só o do vento e, muito ao longe, o bater das ondas na falésia.
- Não se pode nadar nas lagoas?
Encolhe os ombros. Poder, pode, mas ninguém vem para aqui, “em tempos ainda vinha para aí uma alemã tomar banho, mas já morreu”.
Quero organizar o trabalho para os dias seguintes, e peço um táxi para me levar de manhã a dar uma volta pela ilha.
Um sorriso de olha-para-a-esperta-que-vem-do-continente, e logo a resposta: no Corvo não há táxis, não há transportes públicos, e a frota automóvel existente resume-se a meia dúzia de carros particulares, ou nem tanto. Depois há motorizadas, e algumas carrinhas de caixa aberta, onde as pessoas levam o necessário para irem trabalhar as terras.
E uma tabacaria para comprar jornais?
Jornais não há, tabacarias também não.
E juro que lhe senti um leve orgulho na voz quando, a seguir a todas as minhas perguntas (“e lojas? E mercado? “, etc) ele ia respondendo “não há, não há…”
Indica-me onde vou tomar as refeições todos os dias e ,já vai a sair ,quando lhe peço que me dê uma chave da casa, para eu não estar sempre a incomodar quando entro ou saio.
Novo sorriso:
- No Corvo não há chaves. As portas ficam todas no trinco.
Estou no fim do mundo.

Dia 13, 5ª feira
O CAFÉ onde tomo as refeições fica no fundo da rua. De resto, o Corvo tem apenas duas ruas, não há que enganar.
Saio cedo e a vista abarca tudo o que há para ver: a escola, os correios, algumas casas, o posto médico, pequenas hortas, a igreja, os bombeiros, a pista do aeroporto.
No café a televisão está sempre acesa, mas ninguém olha. A Teresinha é quem põe e dispõe. Só há meia dúzia de mesas onde se possa beber um café porque, segundo informa, “depois as pessoas ficam aí sentadas a manhã toda, e quando é hora do almoço não as podemos mandar sair.”
Habituada a trabalhar em cafés, começo a pensar onde é que aqui poderei instalar a minha tralha habitual… Mas por hoje quero apenas fazer visitas de reconhecimento, ontem foi tudo a correr.
Ao almoço (parece que toda a gente come no café da Teresinha), D. Manuel Martins recorda-me que hoje é dia de procissão. Apesar de já ter estado no Corvo, D. Manuel admira-se sempre da pouca frequência nas missas, e da pouca alegria: “ninguém canta!”.
Não é hoje que as coisas mudam: depois da missa das oito da noite, a procissão percorre rapidamente as duas ruas da vila, já quase no fim alguém se lembra de entoar alguns cânticos, mas o entusiasmo não é grande, até porque a maioria é muito velha, as mulheres arrastam-se com dificuldade, faltam-lhe forças para aquele caminho de pedras salientes, quanto mais para cantar.
À cabeça da procissão, D. Manuel pára muitas vezes para olhar para trás. Numa procissão normal, o padre vem sempre no fim. Mas também aqui deve ser diferente. E por isso ele olha para trás, e faz pausas, para que ninguém fique pelo caminho.
“Este padre é pequenino, mas anda tão depressa…”, murmura uma velhota ao meu lado, dobrada sobre a bengala.

Dia 14 – sexta-feira
SAIO cedo, e meto pés ao caminho. Há nuvens anunciando chuva.
Meto-me por trilhos que vão sempre dar a outros trilhos, muitos deles com as falésias a pique a impor respeito. Ouve-se o canto dos pássaros, que pássaros serão estes, meu Deus? (de súbito a recordação da voz do meu marido, “ai, lisboeta de Arroios, que não distingues um melro de uma cotovia!…”), apanho folhas e flores de que também não sei o nome, para as secar entre as páginas de um livro – mania que me ficou da infância – e vou olhando as poucas espécies florestais que reconheço – cedro, fetos, urzes, canaviais… E por toda a parte o negro das rochas de basalto.
A chuva começa, e regresso à estrada, com receio de me perder, mas de repente oiço a buzina de um carro, e o presidente da Câmara a acenar-me para que entre. Sorri quando lhe pergunto como sabia que eu andava por ali: “nesta terra tudo se sabe.”
Janto no sítio do costume, a ver na televisão o Benfica ganhar por dois a zero ao Portimonense. Sou a única a olhar para o ecrã. Os homens estão todos lá fora, a fumar.
Benfica e Portimonense devem dizer-lhes tão pouco.

Dia 17 — 2ª Feira
AFINAL, de que precisamos para viver? Isto perguntava-me eu, nas primeiras horas de aqui chegar – convencida de que iria encontrar, no meio deste isolamento, uma sociedade ainda não contaminada pelos males do consumo.
Rapidamente me fazem descer à terra: estou na sociedade mais desenfreadamente consumista que conheço. Tudo se compra - por encomendas de catálogo, pela lancha que vai às Flores e ao Faial, pela net. A dependência da electricidade é total. A televisão domina tudo. Todas as casas têm arca frigorífica, televisor último grito, computador, microondas, etc. Se algum tem – todos os outros compram a seguir. E há sempre alguém que vende qualquer coisa: fico a saber, por exemplo, que a Teresinha vende Bimby’s que são, ao que parece, um sucesso.
Durante o fim de semana tive longas conversas com o médico da vila e com o presidente da Câmara. Separadamente, claro. Num cenário a lembrar vagamente o de D. Camilo e Peppone, nos livros de Giovanni Guareschi…
Ambos me dão informações necessárias: tirando as casas da vila, onde vivem os cerca de 300 corvinos, não há casas em mais nenhum sítio da ilha. Ninguém se aventurou nunca a morar longe do porto. Surgem por vezes, no verde da paisagem, umas rudimentares construções de pedra que em tempos abrigavam as vacas, mas que agora servem apenas para guardar alfaias.
Aqui ninguém passa fome e, se não há ricos, também não há pobres.
Nunca aqui oiço falar de crise.
Dizem-me que cada corvino tem um lote de terreno, e uma vaca. E que a esmagadora maioria vive do subsídio: se tem vaca, recebe subsídio para tratar dela; se não tem, recebe subsídio para compensar a falta.
E assim se vive.
Trabalha-se, pesca-se, à noite vê-se a telenovela, e os mais novos bebem cerveja nos bombeiros.
São um povo estranho. Fechado, pouco simpático, sem tradições de convívio. Em tempos antigos, os homens juntavam-se no Outeiro onde discutiam (e resolviam) problemas comuns.
E ainda não há muitos anos aqui havia um clube de futebol, um coro, um grupo de teatro.
Tudo isso acabou.
Mas há um moderníssimo (e horrível) Pavilhão Multiusos – fechado quase sempre.

Dia 18, 3ª feira
ESTOU de partida. Preciso de mais umas voltas pela ilha, antes de o avião me levar amanhã de volta.
D. Manuel regressa também.
De todas as conversas que mantivemos, há uma que não me sai da memória:
“Eu acho que esta gente não vai muito à igreja porque não sente necessidade. Eles passam a vida neste isolamento todo, nesta lonjura, neste silêncio, nesta imensidão, estão todos os dias em contacto com Deus. Para quê irem à igreja à procura de um Deus formatado?”
Quero acreditar que sim.
Mas também não me sai da cabeça aquela frase do Raul Brandão, no seu texto sobre o Corvo: “se não fossem cristãos, matavam-se uns aos outros.”
Ele esteve por cá em 1924. Seria o Corvo muito diferente do que é hoje?
Acho que já encontrei o fio condutor do texto para o livro do Jorge.
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«JL» de 30 Nov 11