quarta-feira, 26 de maio de 2010

AS NÃO-NOTÍCIAS

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Por Alice Vieira

ÀS VEZES ainda costumo guardar recortes de jornais. Hábitos que ficam…
Eu sei que hoje já poucos lêem jornais.
Jornais a sério, quero eu dizer.
Jornais — para utilizar uma expressão muito na moda e que eu detesto — “em suporte papel”.
Hoje quase toda a gente clica e lê na net — o que não tem nada a ver com o prazer que dá a leitura de um jornal — até porque se perde muita coisa.
E acabei de recortar uma notícia que me apareceu hoje nas páginas centrais do “Diário de Notícias”.
Porque estava muito bem escrita?
Porque era extremamente importante?
Porque era algum acontecimento a que eu não queria faltar?
Nada disso.
Pura e simplesmente porque era…uma não-notícia.
E é terrível a frequência com que hoje os jornais se enchem de não-notícias.
Os jornais, onde nunca há espaço, por exemplo, para noticiar coisas de cultura, encontram sempre espaço para noticiar o que não interessa a ninguém.
Uma vez estive uma semana no Funchal, integrada numa semana cultural de uma escola. Uma semana em que tinha havido exposições, debates, encontros com autores, etc, etc. Nunca a televisão se lembrou de ir ver o que lá se passava. Uma noite, um grupo de vândalos à solta lembrou-se de partir uma data de vidros da escola. Resultado: logo de manhãzinha a televisão já lá estava.
Mas vamos lá à tal notícia que ocupava hoje espaço no “Diário de Notícias”.
Então a história era esta: a mulher de Tony Blair estava de manhã em casa a fazer torradas, e esturrou uma torrada. Vai daí, o alarme lá de casa tocou e, alguns momentos depois, apareceram os bombeiros, pensando que havia fogo. A senhora agradeceu, disse que não era preciso nada, e eles foram-se embora.
Pronto.
A história é esta.
E é isto que é importante para o jornal! Que até ilustra a notícia com… uma fotografia do Tony Blair, coitado, que nem entra na anedota…
E eu pergunto-me o que é que esta notícia nos traz assim de tão importante…
Que a mulher do Tony Blair é uma naba a fazer torradas?
Que o alarme da casa deles funciona bem?
Que os bombeiros ingleses respondem às chamadas?
Que o Tony Blair saiu sem tomar o pequeno almoço?
É que realmente não consigo mesmo atinar.
Porque isto, evidentemente, é uma não-notícia. E para as não-notícias há sempre espaço. Para as outras é que nem tanto…
Aqui há meses, a Câmara de Lisboa assinou um protocolo com a Casa Fernando Pessoa.
Um protocolo importante, claro.
Tão importante que a directora da Casa Fernando Pessoa, a escritora Inês Pedrosa, decidiu lá organizar um concerto, trazendo a Lisboa um dos maiores intérpretes de Fernando Pessoa : o cantor e compositor italiano Mariano Deidda.
Mariano Deidda tem dedicado grande parte da sua vida a musicar, a cantar e a divulgar a poesia de Fernando Pessoa, tem CD’s gravados (que é quase impossível encontrar à venda por cá…) já fez espectáculos no CCB e no Teatro Nacional. (Já agora, quem estiver interessado procure no Youtube que encontra)
Ter Mariano Deidda na Casa Fernando Pessoa era um privilégio.
E foi, de facto, um privilégio assistir àquele concerto.
Uma amiga minha jornalista estava lá, para fazer a reportagem para o jornal onde trabalha (não, não era o” Diário de Notícias”, para que conste)
Assistiu à assinatura do protocolo, falou com o presidente da Câmara, com a directora da Casa Fernando Pessoa, com Mariano Deidda, e assistiu ao concerto.
Tudo como lhe competia.
Tudo o que qualquer jornalista faria.
No dia seguinte, ao abrir o jornal onde a minha amiga trabalha, encontro uma fotografia do Presidente da Câmara a assinar o protocolo, e meia dúzia de linhas a explicar de que protocolo se tratava.
Mais nada.
Nem sequer a menção de que, a seguir, tinha havido um extraordinário concerto de um dos maiores intérpretes de Fernando Pessoa, que se tinha deslocado de Itália a Lisboa para dar este único espectáculo.
Nem uma palavra.
A minha amiga nem conseguia falar direito quando me ligou, a explicar que todo o resto da reportagem lhe tinha sido cortada porque, segundo quem manda no jornal onde ela trabalha, essas coisas culturais não têm importância nenhuma.
Apesar de tudo, quero crer que ainda há jornais onde a cultura tem algum espaço. Cada vez mais reduzido, é certo, e com um conceito de cultura cada vez mais duvidoso — mas pronto, ainda dão algum espaço a estas coisas.
Mas, para a maioria, se calhar o que é mesmo, mesmo importante, aquilo que toda a gente tem mesmo, mesmo de saber, é que a mulher do Tony Blair deixou esturrar as torradas e que, apesar disso, não aconteceu nada.
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AUDÁCIA de Maio 2010

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