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Por Alice Vieira
A PRINCÍPIO nem ligou. Sempre que voltava do pai ele não se calava, naquele seu linguajar de bebé, a querer meter o mundo todo nas poucas palavras que o seu vocabulário permitia. Ela sorria, enquanto ia desfazendo a mala de fim de semana, com o Rato Mickey de enormes orelhas estampado bem a meio.
Foi a insistência dele que lhe chamou a atenção. E foi então que, nitidamente, percebeu o que ele dizia: “a senhora do pai.”
Sentou-o ao colo, fez-lhe uma festa no cabelo, tudo com muita calma, e foi murmurando:
- A senhora do pai?
Ele acenou com a cabeça.
- O pai tem uma senhora?
Ele acenou com a cabeça.
- Miguel, olha para a mãe…
Ele fixou nela os seus olhos esverdeados.
- Diz à mãe, Miguel… O pai tem uma senhora?
Ele voltou a acenar e acrescentou:
- No carro.
Ela ia perdendo a cabeça. Ainda nem estavam divorciados e já ele andava a enfiar mulheres dentro do carro, e logo no fim de semana em que ela o deixara ficar com o filho. Podia-se pensar que, pelo menos nesses dias, ele se portasse como um pai a sério, até porque podia estar em causa a futura regulamentação do poder paternal, mas não, se calhar “a senhora” até já ficava lá em casa…
Tentou acalmar-se:
- E quando o pai veio trazer o Miguel, a senhora estava no carro?
Ele voltou a acenar com a cabeça mas, farto do interrogatório, deslizou-lhe do colo e foi brincar.
Ela ainda pensou em ligar à mãe a contar, mas desistiu.
- Vamos ter uma conversa, meu menino…- murmurou, discando o número dele no telemóvel.
Combinaram encontrar-se no café, dali a minutos.
- Estás com uma voz! — disse ele — É grave?
- Daqui a dez minutos – repetiu ela.
- Não pode ser aí em casa? — estranhou ele.
- No café — disse ela, desligando.
Não queria correr o risco de o Miguel entrar na sala e ouvir a conversa, café era sítio neutro.
Assim que ele chegou, nem o deixou fazer qualquer pergunta:
- Não me podias ter dito que já tinhas arranjado uma namorada?
Ele olhou-a, espantado.
- Que eu o quê?
- Não te faças de tolo. O Miguel contou-me.
Ele parecia cada vez mais espantado:
- Mas contou-te o quê?
- Que tinhas uma namorada.
- O Miguel disse isso? Uma namorada?
- Não disse uma namorada. Mas disse que o pai tinha uma senhora no carro… Sabes que o vocabulário dele ainda…
Uma enorme gargalhada dele interrompeu-lhe o discurso, e surpreendeu-a, aquele não era propriamente um motivo para risadas.
- Uma senhora… no carro... — repetia ele, rindo cada vez mais. Depois recompôs-se, e disse:
- E claro que pensaste logo no pior. Que eu tinha metido o meu filho no carro com uma galdéria qualquer… Nunca te passou pela cabeça que fosse… A voz do GPS a ensinar o caminho?
Ela olhou-o sem saber se devia ficar furiosa consigo própria, se rir à gargalhada.
- O Miguel ouviu, ficou muito admirado, eu entrei na brincadeira e disse-lhe : “o carro novo do pai tem uma senhora!”
Acabaram por rir os dois, ela a censurar-se intimamente por aqueles ciúmes doentios, que nem com a separação tinham passado, e voltou para casa, contente por não ter falado com a mãe, o que ela não lhe diria agora, quando ela lhe contasse.
E ele entrou no carro, sorrindo. Tirou o telemóvel do bolso, discou um número e, em voz mansa disse:
- Pronto, já arranjei tudo. Veio-me à cabeça uma desculpa verdadeiramente genial! Depois eu conto-te. Mas para a próxima temos de ter mais cuidado.
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ACTIVA de Maio 2010
Por Alice Vieira
A PRINCÍPIO nem ligou. Sempre que voltava do pai ele não se calava, naquele seu linguajar de bebé, a querer meter o mundo todo nas poucas palavras que o seu vocabulário permitia. Ela sorria, enquanto ia desfazendo a mala de fim de semana, com o Rato Mickey de enormes orelhas estampado bem a meio.
Foi a insistência dele que lhe chamou a atenção. E foi então que, nitidamente, percebeu o que ele dizia: “a senhora do pai.”
Sentou-o ao colo, fez-lhe uma festa no cabelo, tudo com muita calma, e foi murmurando:
- A senhora do pai?
Ele acenou com a cabeça.
- O pai tem uma senhora?
Ele acenou com a cabeça.
- Miguel, olha para a mãe…
Ele fixou nela os seus olhos esverdeados.
- Diz à mãe, Miguel… O pai tem uma senhora?
Ele voltou a acenar e acrescentou:
- No carro.
Ela ia perdendo a cabeça. Ainda nem estavam divorciados e já ele andava a enfiar mulheres dentro do carro, e logo no fim de semana em que ela o deixara ficar com o filho. Podia-se pensar que, pelo menos nesses dias, ele se portasse como um pai a sério, até porque podia estar em causa a futura regulamentação do poder paternal, mas não, se calhar “a senhora” até já ficava lá em casa…
Tentou acalmar-se:
- E quando o pai veio trazer o Miguel, a senhora estava no carro?
Ele voltou a acenar com a cabeça mas, farto do interrogatório, deslizou-lhe do colo e foi brincar.
Ela ainda pensou em ligar à mãe a contar, mas desistiu.
- Vamos ter uma conversa, meu menino…- murmurou, discando o número dele no telemóvel.
Combinaram encontrar-se no café, dali a minutos.
- Estás com uma voz! — disse ele — É grave?
- Daqui a dez minutos – repetiu ela.
- Não pode ser aí em casa? — estranhou ele.
- No café — disse ela, desligando.
Não queria correr o risco de o Miguel entrar na sala e ouvir a conversa, café era sítio neutro.
Assim que ele chegou, nem o deixou fazer qualquer pergunta:
- Não me podias ter dito que já tinhas arranjado uma namorada?
Ele olhou-a, espantado.
- Que eu o quê?
- Não te faças de tolo. O Miguel contou-me.
Ele parecia cada vez mais espantado:
- Mas contou-te o quê?
- Que tinhas uma namorada.
- O Miguel disse isso? Uma namorada?
- Não disse uma namorada. Mas disse que o pai tinha uma senhora no carro… Sabes que o vocabulário dele ainda…
Uma enorme gargalhada dele interrompeu-lhe o discurso, e surpreendeu-a, aquele não era propriamente um motivo para risadas.
- Uma senhora… no carro... — repetia ele, rindo cada vez mais. Depois recompôs-se, e disse:
- E claro que pensaste logo no pior. Que eu tinha metido o meu filho no carro com uma galdéria qualquer… Nunca te passou pela cabeça que fosse… A voz do GPS a ensinar o caminho?
Ela olhou-o sem saber se devia ficar furiosa consigo própria, se rir à gargalhada.
- O Miguel ouviu, ficou muito admirado, eu entrei na brincadeira e disse-lhe : “o carro novo do pai tem uma senhora!”
Acabaram por rir os dois, ela a censurar-se intimamente por aqueles ciúmes doentios, que nem com a separação tinham passado, e voltou para casa, contente por não ter falado com a mãe, o que ela não lhe diria agora, quando ela lhe contasse.
E ele entrou no carro, sorrindo. Tirou o telemóvel do bolso, discou um número e, em voz mansa disse:
- Pronto, já arranjei tudo. Veio-me à cabeça uma desculpa verdadeiramente genial! Depois eu conto-te. Mas para a próxima temos de ter mais cuidado.
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ACTIVA de Maio 2010
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