Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
MORREU O REI de Inglaterra, e cá em casa não se fala noutra coisa.
Não é que a morte do rei me interesse muito: só estou ligeiramente preocupado porque D. Manuel vai ficar uma data de dias em Londres e, com tanto tempo sem rei, se calhar agora é que vem a república.
A minha avó está muito ofendida comigo por eu não me lembrar do dia em que o rei de Inglaterra veio a Lisboa, mas nessa altura eu tinha sete anos, e confesso que, até hoje, as únicas coisas que me lembro de ouvir contar sobre o rei de Inglaterra é que ele tinha subido ao trono muito velho porque a mãe nunca mais morria; e que por causa dele é que o Parque da Liberdade se tinha ficado a chamar Parque Eduardo VII.
O meu pai diz que é muito má altura para D. Manuel ir ao estrangeiro porque por cá as coisas andam mal: acho que rebentou um grande escândalo num banco chamado Crédito Predial, e a gente já sabe que quando se mete dinheiro pelo meio, fica tudo de cabeça perdida.
- Pode ser que ele não fique por lá muito tempo…- disse o meu pai.
- Lembra-te da coroação…- disse a minha mãe e, de repente, ela e o meu pai desataram a rir. A minha avó franziu as sobrancelhas, murmurou “mais respeito!”, e eles calaram-se.
Então o meu pai contou-me que há sete anos, quando a rainha finalmente morreu e o filho subiu ao trono, estava já tudo preparado para a coroação, com representantes de todos os países, (incluindo o nosso, que mandou o príncipe herdeiro, que então era D. Luís Filipe, porque ainda não tinha sido morto…) - mas na véspera, ao fumar o seu cigarrito, o rei tinha-se sentido muito mal e lá veio o médico a correr que diagnosticou uma apendicite!.
Eu não sei que doença é essa, mas o meu pai disse que era uma coisa muito grave e que foi preciso operar, e que foi a primeira vez que foi usada a “anestesiologia”, que é uma ciência que ensina os médicos a darem uns remédios ás pessoas que elas parece que estão mortas mas não estão, e depois acordam e não sentiram nada.
E por causa da apendicite, a coroação do rei, marcada para Junho, teve de ser em Agosto. E lá voltaram os reis todos para casa.
Mas é claro que agora, com o rei já morto, essas coisas não vão acontecer.
O meu pai também parece ofendido por eu não me lembrar nada do que aconteceu há sete anos. Republicano como ele é, nunca pensei que a minha ignorância dos reis de Inglaterra o incomodasse tanto.
- Nem te lembras de quando D. Carlos foi a Inglaterra assinar o segundo Tratado de Windsor?
Foi quase logo a seguir…
Estive para lhe dizer que não me lembrava do primeiro, quanto mais do segundo, mas calei-me.
- Esse ano de 1902 foi mesmo muito importante — murmura ele.
Dou voltas à cabeça, a tentar recordar em que republicano é que ele estará a pensar, em que conspiração falhada, comício, greves, bombas…
Nada.
Para mim, o ano de 1902 é um deserto.
Até que o meu pai respira fundo e diz:
- Foi o ano em que foi fundado o Sport Lisboa e Benfica.
E sai de casa, para ir abrir a livraria.
-Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
MORREU O REI de Inglaterra, e cá em casa não se fala noutra coisa.
Não é que a morte do rei me interesse muito: só estou ligeiramente preocupado porque D. Manuel vai ficar uma data de dias em Londres e, com tanto tempo sem rei, se calhar agora é que vem a república.
A minha avó está muito ofendida comigo por eu não me lembrar do dia em que o rei de Inglaterra veio a Lisboa, mas nessa altura eu tinha sete anos, e confesso que, até hoje, as únicas coisas que me lembro de ouvir contar sobre o rei de Inglaterra é que ele tinha subido ao trono muito velho porque a mãe nunca mais morria; e que por causa dele é que o Parque da Liberdade se tinha ficado a chamar Parque Eduardo VII.
O meu pai diz que é muito má altura para D. Manuel ir ao estrangeiro porque por cá as coisas andam mal: acho que rebentou um grande escândalo num banco chamado Crédito Predial, e a gente já sabe que quando se mete dinheiro pelo meio, fica tudo de cabeça perdida.
- Pode ser que ele não fique por lá muito tempo…- disse o meu pai.
- Lembra-te da coroação…- disse a minha mãe e, de repente, ela e o meu pai desataram a rir. A minha avó franziu as sobrancelhas, murmurou “mais respeito!”, e eles calaram-se.
Então o meu pai contou-me que há sete anos, quando a rainha finalmente morreu e o filho subiu ao trono, estava já tudo preparado para a coroação, com representantes de todos os países, (incluindo o nosso, que mandou o príncipe herdeiro, que então era D. Luís Filipe, porque ainda não tinha sido morto…) - mas na véspera, ao fumar o seu cigarrito, o rei tinha-se sentido muito mal e lá veio o médico a correr que diagnosticou uma apendicite!.
Eu não sei que doença é essa, mas o meu pai disse que era uma coisa muito grave e que foi preciso operar, e que foi a primeira vez que foi usada a “anestesiologia”, que é uma ciência que ensina os médicos a darem uns remédios ás pessoas que elas parece que estão mortas mas não estão, e depois acordam e não sentiram nada.
E por causa da apendicite, a coroação do rei, marcada para Junho, teve de ser em Agosto. E lá voltaram os reis todos para casa.
Mas é claro que agora, com o rei já morto, essas coisas não vão acontecer.
O meu pai também parece ofendido por eu não me lembrar nada do que aconteceu há sete anos. Republicano como ele é, nunca pensei que a minha ignorância dos reis de Inglaterra o incomodasse tanto.
- Nem te lembras de quando D. Carlos foi a Inglaterra assinar o segundo Tratado de Windsor?
Foi quase logo a seguir…
Estive para lhe dizer que não me lembrava do primeiro, quanto mais do segundo, mas calei-me.
- Esse ano de 1902 foi mesmo muito importante — murmura ele.
Dou voltas à cabeça, a tentar recordar em que republicano é que ele estará a pensar, em que conspiração falhada, comício, greves, bombas…
Nada.
Para mim, o ano de 1902 é um deserto.
Até que o meu pai respira fundo e diz:
- Foi o ano em que foi fundado o Sport Lisboa e Benfica.
E sai de casa, para ir abrir a livraria.
«JN» de 8 Mai 10
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