sábado, 15 de maio de 2010

VEM AÍ O COMETA

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

D. MANUEL LÁ PARTE AMANHÃ para Londres, para assistir à coroação do novo rei de Inglaterra.

- Agora é que lhe arranjam casamento com a tal princesa inglesa…- diz a minha avó.
- Não me parece…- diz a minha mãe — Não estou a ver a Rainha a deixar casar o filho com uma princesa que não é católica…

A Rosa, que até ganhou novas cores desde que o Alfredo lhe voltou a aparecer ao domingo (“ai homem de Deus, que já te fazia na choça!”), garante que o rei vai mas é encontrar-se com uma actriz francesa que conheceu há uns tempos…Pelo menos é o que o Alfredo conta, e ele anda sempre muito bem informado.
Mas nestes últimos dias, cá em casa - e ao contrário do que é costume…- nem se tem ouvido falar em monarquia ou república.
Agora, anda toda a gente aflita por causa do cometa.
Até eu não me sinto lá muito seguro, sobretudo depois de ver a capa da última “Ilustração Portuguesa”, que traz o monstro que dentro de dias pode atacar a Terra e dar cabo de nós.
O Cometa Halley está a chegar — é o que se ouve em toda a parte. Dizem que vai passar tão perto da Terra, que o mais certo é esbarrar nela e ninguém pode prever o que vai acontecer. Dizem que até há gente que já se suicidou por causa disso.

- É o fim do mundo — murmura a minha avó.

(Quando mataram D. Carlos e D. Luís Filipe, a minha avó também disse que era o fim do mundo.
Quando foi do terramoto de Benavente, a minha avó também disse que era o fim do mundo.
De cada vez que rebentam bombas, a minha avó também diz que é o fim do mundo.
Digamos que o fim do mundo já se vai tornando um hábito cá em casa.)
Ontem a Rosa chegou da Praça da Figueira e disse:

- Andam a vender garrafas de oxigénio por causa do cometa. Eu já comprei uma.

O meu pai até deu um berro.
E deu mais outro quando ela acrescentou que, para lá das garrafas de oxigénio, também estavam a vender máscaras de gás e comprimidos milagrosos. O dinheiro dela é que só tinha dado para a garrafa.
Indignado, o meu pai fez logo ali um comício republicano, a protestar contra a ignorância em que queriam manter o povo, para assim o poderem explorar melhor.

- Se as pessoas tivessem instrução, saberiam que isso é tudo obra de vigaristas, e que desde o ano passado os cientistas observam o cometa, e estão preparados para a sua chegada.
- Dizem que a cauda é enorme e que, com o embate, se vão espalhar gases desconhecidos que podem devastar o planeta! — disse a minha avó.
- Mas quais gases…Aquilo é tudo vapor de água!.... — o meu pai estava mesmo muito ofendido com a nossa ignorância.
- Não quero ouvir cá em casa mais disparates destes! — disse ele.

E, virando-se para a minha mãe, acrescentou:

- Preocupa-te com o enxoval do rapaz, que já tens bastante com que te ocupar!

E saiu.
Estive mesmo para perguntar:

- E se for uma rapariga?

Mas não perguntei: com as desgraças do cometa, a ignorância do povo, e o rei a viajar para Inglaterra, não quis agravar a situação.
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«JN» de 15 Mai 10

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