sábado, 11 de setembro de 2010

A CADEIRA DE SÃO GENS

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Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

FOI UM REGRESSO a Lisboa muito atribulado.
A minha mãe não parava de vomitar, e ninguém conseguia encontrar a Dra. Adelaide Cabete, para lhe acudir.
- Isto não é nada — dizia ela, para nos sossegar, mas ninguém sossegava.
- Claro — resmungava a minha avó — escolhem médicas que se interessam mais pela política do que pelos doentes e depois é isto… Deve andar lá pelos estrangeiros, a gritar que as mulheres é que devem mandar neste mundo..
- E talvez não fosse má ideia--dizia a minha mãe, entre dois vómitos.
- Va de retro, Satanás! – exclamava logo a minha avó.
Foi então que ontem a vizinha Henriqueta subiu cá acima com um conselho para a minha mãe. Por que é que ela não ia até à capelinha da Senhora do Monte e se sentava, por uns minutos, na cadeira de São Gens? Toda a gente sabia que era uma cadeira milagrosa.
O meu pai, que estava em casa nessa altura, só não explodiu de fúria porque era pessoa educada e fazia questão de manter boas relações com a vizinhança.
Mas eu vi como ele ficou vermelho.
- A D. Henriqueta desculpar-me-á — disse, com a voz mais calma que lhe era possível - mas não vejo como é que uma cadeira pode fazer milagres. Isso é mais uma daquelas aldrabices que os padres querem enfiar à força na cabeça das pessoas ignorantes!
A minha avó suspirou muito fundo, e a vizinha Henriqueta fez que nem o ouviu e disse apenas:
- Sr. Fernando, é evidente que não é uma cadeira qualquer! É a cadeira onde se sentava o mártir São Gens, que foi o primeiro bispo de Lisboa! A mãe de São Gens morreu de parto…
- Ai, nem me fale nisso — murmurou a minha mãe, baixinho.
--… e, por isso ,todas as mulheres grávidas que se sentam nessa cadeira…
- Morrem de parto, não me diga! — exclamou o meu pai .
- Credo, Sr. Fernando, nem a brincar diga uma blasfémia dessas! — e a vizinha Henriqueta benzeu-se três vezes, para esconjurar desgraças .
Depois, já mais calma, continuou:
- É exactamente o contrário! Por acção do mártir São Gens, todas as mulheres grávidas que se sentam nessa cadeira têm uma gravidez tranquila, e uma hora pequenina.
Para mim, todas as horas são iguais, sessenta minutos cada, e não percebi como podia haver horas mais pequenas que outras, mas não disse nada, se calhar também era milagre do santo.
A vizinha Henriqueta insistia:
- Vá lá, D. Joaquina! Vai ver como todo esse mau estar lhe passa!
A minha mãe olhou para o meu pai, mas o meu pai olhou para o relógio e disse apenas:
- Tenho de ir abrir a livraria.
E saiu.
Então ontem, a minha mãe, a minha avó, a Rosa, a vizinha Henriqueta e eu fomos todos até à Graça, subimos a rua íngreme que leva à Senhora do Monte, e a minha mãe sentou-se na cadeira de pedra, logo à entrada da capelinha. Ao princípio foi complicado, porque a cadeira é muito estreita e a minha mãe está um bocado gorda, mas lá se conseguiu encaixar.
Quando à noite o meu pai chegou, ninguém lhe disse nada.
Mas o que é facto é que a minha mãe desde ontem que não vomita.

«JN» de 11 Set 10

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