Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
PARA A SEMANA voltamos para Lisboa.
A minha mãe recomeçou a vomitar, e todos cá em casa se assustaram. Ainda sugeri que tomasse umas colherzinhas do Elixir do Dr. Mealhe, que cura os males de estômago da minha avó, mas ela resmungou:
- Isto não tem nada a ver com o estômago. E não são conversas para ti.
Quando me dizem isto, eu vou logo perguntar à Rosa e ela explica-me.
Não percebo porque é que a minha mãe ou a minha avó não me explicam o que ela explica. Ela diz que há assuntos que as pessoas não gostam que as crianças saibam, e que também há assuntos que são só de mulheres e assuntos que são só de homens. Parece que os vómitos da minha mãe são assunto só de mulheres, e acontecem por causa do meu irmão. Ter uma criança deve fazer um mal horrível ao estômago das mulheres.
Para além disso, a minha mãe dorme mal, e tem pesadelos, porque em todo o lado se ouve falar de uma epidemia de bexigas doidas em Lisboa, que os médicos não conseguem controlar.
Os jornais dizem que centenas de pessoas estão a ser vacinadas todos os dias, e a minha mãe anda sempre a pedir ao meu pai que a leve também à vacina, porque as bexigas doidas são um perigo, e quando uma pessoa as apanha ou morre ou fica marcada para a vida inteira, e se ela as apanhar o meu irmão morre à nascença.
O meu pai tenta acalmá-la, e diz-lhe que a varíola (o meu pai nunca diz “bexigas doidas”…) ataca sobretudo as pessoas que vivem na miséria e numa completa falta de higiene.
- Não é a nós que a varíola ataca. Nós temos possibilidades de viver numa casa boa, com todas as condições, e podemos passar férias em lugares saudáveis. A varíola ataca as famílias que vivem amontoadas em casebres miseráveis, sem dinheiro, sem condições, essa legião de mendigos que cada vez é maior…
- Lá está o senhor meu genro a fazer política…- resmungou a minha avó.
E o meu pai saiu da sala, para não aumentar a discussão e a minha mãe ficar ainda mais nervosa.
O meu pai até tem andado bem disposto, porque nas eleições da semana passada os republicanos duplicaram a votação! Tinham sete deputados, e agora têm 14 — como o ouvi dizer há bocado ao Sr. Sebastião.
Que, por acaso, me pareceu mais interessado numa notícia da “Ilustração Portuguesa”, em que se falava de um invento de um engenheiro dinamarquês, coisa verdadeiramente revolucionária: um aparelho completamente automático para mungir as vacas.
O Sr. Sebastião, que tem umas terras e uns animais na Beira, nem queria acreditar:
- Imagine o Sr. Fernando que nem é preciso mexermos com as nossas mãos nas tetas delas!
Olhei para o meu pai e vi que ele nem estava a ouvir nada. Estava a pensar nos 14 deputados.
Agora é que a revolução está mesmo, mesmo a rebentar.
E talvez por isso ele tenha aproveitado este mal estar da minha mãe para anunciar o regresso a Lisboa: não tinha mesmo graça nenhuma que a República rebentasse quando ele estivesse a conversar sobre as vacas do Sr. Sebastião na Drogaria Gonçalves.
.A minha mãe recomeçou a vomitar, e todos cá em casa se assustaram. Ainda sugeri que tomasse umas colherzinhas do Elixir do Dr. Mealhe, que cura os males de estômago da minha avó, mas ela resmungou:
- Isto não tem nada a ver com o estômago. E não são conversas para ti.
Quando me dizem isto, eu vou logo perguntar à Rosa e ela explica-me.
Não percebo porque é que a minha mãe ou a minha avó não me explicam o que ela explica. Ela diz que há assuntos que as pessoas não gostam que as crianças saibam, e que também há assuntos que são só de mulheres e assuntos que são só de homens. Parece que os vómitos da minha mãe são assunto só de mulheres, e acontecem por causa do meu irmão. Ter uma criança deve fazer um mal horrível ao estômago das mulheres.
Para além disso, a minha mãe dorme mal, e tem pesadelos, porque em todo o lado se ouve falar de uma epidemia de bexigas doidas em Lisboa, que os médicos não conseguem controlar.
Os jornais dizem que centenas de pessoas estão a ser vacinadas todos os dias, e a minha mãe anda sempre a pedir ao meu pai que a leve também à vacina, porque as bexigas doidas são um perigo, e quando uma pessoa as apanha ou morre ou fica marcada para a vida inteira, e se ela as apanhar o meu irmão morre à nascença.
O meu pai tenta acalmá-la, e diz-lhe que a varíola (o meu pai nunca diz “bexigas doidas”…) ataca sobretudo as pessoas que vivem na miséria e numa completa falta de higiene.
- Não é a nós que a varíola ataca. Nós temos possibilidades de viver numa casa boa, com todas as condições, e podemos passar férias em lugares saudáveis. A varíola ataca as famílias que vivem amontoadas em casebres miseráveis, sem dinheiro, sem condições, essa legião de mendigos que cada vez é maior…
- Lá está o senhor meu genro a fazer política…- resmungou a minha avó.
E o meu pai saiu da sala, para não aumentar a discussão e a minha mãe ficar ainda mais nervosa.
O meu pai até tem andado bem disposto, porque nas eleições da semana passada os republicanos duplicaram a votação! Tinham sete deputados, e agora têm 14 — como o ouvi dizer há bocado ao Sr. Sebastião.
Que, por acaso, me pareceu mais interessado numa notícia da “Ilustração Portuguesa”, em que se falava de um invento de um engenheiro dinamarquês, coisa verdadeiramente revolucionária: um aparelho completamente automático para mungir as vacas.
O Sr. Sebastião, que tem umas terras e uns animais na Beira, nem queria acreditar:
- Imagine o Sr. Fernando que nem é preciso mexermos com as nossas mãos nas tetas delas!
Olhei para o meu pai e vi que ele nem estava a ouvir nada. Estava a pensar nos 14 deputados.
Agora é que a revolução está mesmo, mesmo a rebentar.
E talvez por isso ele tenha aproveitado este mal estar da minha mãe para anunciar o regresso a Lisboa: não tinha mesmo graça nenhuma que a República rebentasse quando ele estivesse a conversar sobre as vacas do Sr. Sebastião na Drogaria Gonçalves.
«JN» de 4 Set 10
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