Por Alice Vieira
DESCIAM A CALÇADA DO COMBRO, Lisboa ardia naquela tarde de fim de verão, as duas queixando-se “deste tempo em que as estações já não querem dizer nada.”
Recordaram ambas as tardes em que iam com as mães à Baixa, comprar tecido para os “fatos de meia-estação”…
“Meia-estação”, diz a minha filha, é metade da Gare do Oriente…”
Entram num café, que ainda se chama “leitaria”, as mesas ocupadas por mulheres do bairro, que discutem, com a mulher ao balcão, doenças, insónias e falta de dinheiro.
Arranjam uma mesa ao fundo.
De repente ela olha em volta e desata a rir:
“Há mais de 30 anos que não entrava aqui!”
A amiga não percebe, é uma leitaria de bairro, sem nada que a torne diferente das outras.
Ainda a rir, ela acrescenta:
“Era aqui que o Miguel vinha ter comigo ao fim do dia…E fica sabendo que, neste momento, eu podia ser a dona disto!”
Nunca contara a história a ninguém. Nem sequer ao Miguel, que nunca entendeu por que razão, de um dia para o outro, ela decidira esperá-lo noutro lugar, longe dali.
Todos os dias, depois das sete, ela entrava e escolhia a mesa que dava para a rua, para melhor poder ver o Miguel a aproximar-se. Tinham pouco mais de 20 anos, estavam apaixonados, um dia iriam casar e seriam felizes para sempre. O Sr.Joaquim, dono da leitaria, seguia aquele namoro com benevolência, sorrisos e compreensão.
Às vezes o Miguel atrasava-se, às vezes não chegava e ela acabava por voltar para casa, sem saber o que tinha acontecido. Em casa, com a mãe sempre a vigiar-lhe os passos, era impossível telefonar. Tinha de esperar pelo dia seguinte, pelas sete horas, pela mesa na leitaria do Sr. Joaquim.
Um dia, desses em que o Miguel faltara, o Sr.Joaquim aproximou-se da mesa.
“A menina dá-me licença?”
E antes que ela pudesse dizer fosse o que fosse, já o Sr. Joaquim se sentava na sua frente e começava com uma estranha conversa:
“Se a menina quisesse…”
E ela sem entender, e ele:
“O seu namorado não a merece, a menina aqui à espera dele e ele nem aparece, e não são uma nem duas vezes, que eu bem noto, ouça bem o que eu lhe digo, mande-o à vida antes que seja tarde, aquilo não é futuro para a menina, a menina merece muito mais…”
E ela sem conseguir dizer nada, a olhar para o Sr. Joaquim, para o cabelo muito preto a tresandar a Restaurador Olex do Sr. Joaquim, e ele no seu discurso imparável:
“Se a menina quisesse, eu podia fazê-la muito feliz, ficava com esta leitaria, punha-lhe uma casa com tudo o que a menina quisesse, nada lhe faltava, seria sempre muito estimada, nem precisava de trabalhar…"
Aproveitando uma pausa providencial, ela sorri, diz qualquer coisa como “obrigada”, e sai disparada, sem olhar para trás.
Nunca mais ali tinha entrado.
“Tinha sido o teu futuro…”, exclama a amiga, no meio de uma gargalhada, “estavas hoje a servir galões e bolos de arroz às velhas, e a ouvires as suas maleitas e desgraças…Diz lá se não tinha sido melhor do que teres passado a vida a corrigir testes …”
Riem ambas, ela ainda a recordar a cara do Sr. Joaquim, o brilho untuoso dos olhos do Sr. Joaquim.
Pagam a despesa, e ela não resiste a perguntar à mulher que está ao balcão:
- Esta leitaria era do Sr. Joaquim…Ainda é vivo?
A mulher abana a cabeça:
- Morreu há muitos anos. Eu era miúda e não me lembro, mas a minha mãe está sempre a contar que foi muito estranho: chegou uma tarde a casa muito maldisposto, sentou-se à mesa, e deixou cair a cabeça. Estava morto. Fulminante, diz a minha mãe.
Saem as duas para o calor da tarde.
E até chegarem a casa não dizem nem mais uma palavra.
DESCIAM A CALÇADA DO COMBRO, Lisboa ardia naquela tarde de fim de verão, as duas queixando-se “deste tempo em que as estações já não querem dizer nada.”
Recordaram ambas as tardes em que iam com as mães à Baixa, comprar tecido para os “fatos de meia-estação”…
“Meia-estação”, diz a minha filha, é metade da Gare do Oriente…”
Entram num café, que ainda se chama “leitaria”, as mesas ocupadas por mulheres do bairro, que discutem, com a mulher ao balcão, doenças, insónias e falta de dinheiro.
Arranjam uma mesa ao fundo.
De repente ela olha em volta e desata a rir:
“Há mais de 30 anos que não entrava aqui!”
A amiga não percebe, é uma leitaria de bairro, sem nada que a torne diferente das outras.
Ainda a rir, ela acrescenta:
“Era aqui que o Miguel vinha ter comigo ao fim do dia…E fica sabendo que, neste momento, eu podia ser a dona disto!”
Nunca contara a história a ninguém. Nem sequer ao Miguel, que nunca entendeu por que razão, de um dia para o outro, ela decidira esperá-lo noutro lugar, longe dali.
Todos os dias, depois das sete, ela entrava e escolhia a mesa que dava para a rua, para melhor poder ver o Miguel a aproximar-se. Tinham pouco mais de 20 anos, estavam apaixonados, um dia iriam casar e seriam felizes para sempre. O Sr.Joaquim, dono da leitaria, seguia aquele namoro com benevolência, sorrisos e compreensão.
Às vezes o Miguel atrasava-se, às vezes não chegava e ela acabava por voltar para casa, sem saber o que tinha acontecido. Em casa, com a mãe sempre a vigiar-lhe os passos, era impossível telefonar. Tinha de esperar pelo dia seguinte, pelas sete horas, pela mesa na leitaria do Sr. Joaquim.
Um dia, desses em que o Miguel faltara, o Sr.Joaquim aproximou-se da mesa.
“A menina dá-me licença?”
E antes que ela pudesse dizer fosse o que fosse, já o Sr. Joaquim se sentava na sua frente e começava com uma estranha conversa:
“Se a menina quisesse…”
E ela sem entender, e ele:
“O seu namorado não a merece, a menina aqui à espera dele e ele nem aparece, e não são uma nem duas vezes, que eu bem noto, ouça bem o que eu lhe digo, mande-o à vida antes que seja tarde, aquilo não é futuro para a menina, a menina merece muito mais…”
E ela sem conseguir dizer nada, a olhar para o Sr. Joaquim, para o cabelo muito preto a tresandar a Restaurador Olex do Sr. Joaquim, e ele no seu discurso imparável:
“Se a menina quisesse, eu podia fazê-la muito feliz, ficava com esta leitaria, punha-lhe uma casa com tudo o que a menina quisesse, nada lhe faltava, seria sempre muito estimada, nem precisava de trabalhar…"
Aproveitando uma pausa providencial, ela sorri, diz qualquer coisa como “obrigada”, e sai disparada, sem olhar para trás.
Nunca mais ali tinha entrado.
“Tinha sido o teu futuro…”, exclama a amiga, no meio de uma gargalhada, “estavas hoje a servir galões e bolos de arroz às velhas, e a ouvires as suas maleitas e desgraças…Diz lá se não tinha sido melhor do que teres passado a vida a corrigir testes …”
Riem ambas, ela ainda a recordar a cara do Sr. Joaquim, o brilho untuoso dos olhos do Sr. Joaquim.
Pagam a despesa, e ela não resiste a perguntar à mulher que está ao balcão:
- Esta leitaria era do Sr. Joaquim…Ainda é vivo?
A mulher abana a cabeça:
- Morreu há muitos anos. Eu era miúda e não me lembro, mas a minha mãe está sempre a contar que foi muito estranho: chegou uma tarde a casa muito maldisposto, sentou-se à mesa, e deixou cair a cabeça. Estava morto. Fulminante, diz a minha mãe.
Saem as duas para o calor da tarde.
E até chegarem a casa não dizem nem mais uma palavra.
«ACTIVA» Set 2010
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