sábado, 18 de setembro de 2010

VOLTARAM OS TIROS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

COMO A DRA. ADELAIDE continua sem tempo para acudir aos enjoos da minha mãe, o meu pai mandou a Rosa pedir ajuda à vizinha Henriqueta, que imediatamente enviou a nossa casa uma senhora muito simpática, que sorriu para todos e, em jeito de apresentação, disse:

- Trabalhei muito tempo com a D. Alice Costa!

A minha avó desfez-se em sorrisos e acompanhou-a ao quarto da minha mãe, enquanto o meu pai resmungava:

- Talassa…

Tudo porque, segundo me contou a Rosa, a D. Alice Costa foi quem ajudou D. Luis Filipe e D. Manuel a nascer.
Depois de examinar a minha mãe, a senhora veio ter connosco e disse:

- Ou ela fica em repouso absoluto, ou a criança nasce antes do tempo.

É muito grave uma criança nascer antes do tempo, pode até morrer, e por isso estamos todos um bocado assustados, e o meu pai até ficou em casa. A situação política também o preocupa: as Cortes deviam ter aberto hoje, mas ficou tudo adiado para dia 23.
Sentou-se ao lado da minha mãe e começou a ler-lhe o último número da “Ilustração Portuguesa”.

- Veja lá que assunto é que escolhe! - barafustou a minha avó.
- A senhora minha sogra fique descansada, o que vou ler é uma obra de arte! Literatura com um L gigante!

E então disse que se tratava de uma reportagem que o seu amigo Aquilino Ribeiro tinha mandado de Paris.

- Pelo amor de Deus, não me fale desse bombista! - gritou a minha avó, mas o meu pai fez que não ouviu e começou a ler o relato de um circuito de aviação em Paris.

Eu adoro aviões, e já me estava a ver dentro de um deles, nessa viagem de 800 quilómetros, ou então no campo de Issy-les-Moulineaux, entre a multidão que tinha ido assistir à partida das aeronaves.
O meu pai lia pausadamente, de vez em quando parava para exclamar “ esta alma do diabo escreve mesmo bem!”, e depois continuava, e eu estava um bocado confuso com aquelas palavras, mas se o meu pai dizia que era bom é porque era.
Estava ele, emocionado, a ler

“…e as passarolas, airosas como aves do paraíso, saíram dos seus ninhos e, açoitando a atmosfera doirada do nascente, filistriaram, curvetearam, descreveram mil regalos à vista e…”

quando um petardo rebenta mesmo ao pé da nossa casa.
A casa tremeu toda, os copos na cristaleira batiam uns nos outros que nem sei como não se partiram, e a minha mãe desatou aos gritos.
Fomos todos à janela, só se ouviam tiros e o barulho que os cascos dos cavalos do esquadrão da Guarda Municipal faziam na calçada.
Um homem passou a correr debaixo da nossa janela e gritou:

- A carbonária anda a lançar bombas à polícia!

Fechámos bem as janelas, e tentámos acalmar.
O meu pai voltou para o pé da minha mãe, e dizia:

- Então, Maria José, não é nada…Quer dizer…é o costume…Já devias estar habituada…

Mas a “Ilustração Portuguesa”, mais as “passarolas airosas como aves do paraíso”, ficaram abandonadas em cima da mesa.
Há momentos da nossa vida que nenhuma literatura consegue igualar.
Mesmo com L gigante.

«JN» de 18 Set 10

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