sexta-feira, 3 de junho de 2011

A FOTOGRAFIA

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Por Alice Vieira

PARA ESQUECER maleitas e desgraças afins, nada melhor do que enchermo-nos de coragem…e desatar a rasgar papéis.
Mas às vezes temos de parar.
Porque de repente nos cai nas mãos, vinda sabe-se lá donde, memória de um tempo que julgávamos esquecido, ou em que já não pensávamos há anos.
Uma fotografia.
Olho para ela e lembro-me de tudo.
E porque os nossos chefes de redacção nos ensinavam que devíamos sempre escrever todos os elementos nas costas das fotografias, esta, que tem o carimbo do DN, diz-me que foi tirada no Teatro da Trindade, a 20 de Setembro de 1978, pelo meu camarada de redacção Luís Saraiva. Os fotografados são Anna Máscolo e Anton Dolin.
Acho que me lembro deste dia do princípio ao fim. Da entrevistas que fiz a ambos, da conversa que se prolongou tarde fora, da verdadeira força da natureza que era (e é…) a Anna, ao lado da aparente fragilidade do Anton Dolin - e eu nas nuvens, porque estava a falar com dois monstros da dança. Fiquei amiga da Anna até hoje.
Sorrio para a fotografia, e tenho a certeza de que nenhum chefe de redacção me daria hoje uma página inteira do jornal do dia (e o DN tinha ainda aquele formato gigantesco!) para eu encher com uma conversa sobre Dança.
E porque estas coisas andam todas ligadas, penso no pouco espaço que há hoje para a cultura, na pouca atenção dos governantes – como se ela fosse dispensável, uma espécie de traste que herdámos dos antepassados e estamos mortinhos por deitar fora. Daí que nem me espante a ideia de acabar com o Ministério da Cultura.

E agora deixem-me terminar esta crónica com uma história do século passado.
Durante a guerra, a Inglaterra fazia esforços titânicos para se aguentar com as despesas. Um dia propuseram a Churchill, para ajudar o “esforço de guerra”, como então se dizia, cortes muito substanciais na cultura.
Churchill recusou. Sem a cultura, “what are we fighting for?” (“por que é que estamos a lutar?”)
Outro tempo, claro.
Outra gente também.
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«JN» de 3 Jun 11

sexta-feira, 20 de maio de 2011

EM LOUVOR DA FRALDA DE PANO

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Por Alice Vieira

VOU CONTAR uma história verdadeira, de há mais de 30 anos.
Nesse tempo eu trabalhava no DN na mesma sala do meu querido amigo Pacheco de Andrade. Dávamo-nos muito bem, nas nossas ideologias completamente opostas, mas nem ele me queria converter a mim nem eu a ele.
Ele tinha acabado de ser pai. Um pai muito tardio, que nunca na vida sonhara ter um dia uma criança nos braços. Os meus filhos eram pequenos mas, de qualquer modo, mais velhos do que o seu bebé, e por isso eu era a sua conselheira para aqueles casos que só são banais quando se tem alguma experiência do assunto.
Um dia o Pacheco de Andrade foi convidado para ir a um programa de televisão. Lembro-me de que na véspera se riu para mim e murmurou: “o que não irá o seu marido escrever depois!”
Pus logo os pontos nos is e expliquei-lhe que tinha dito ao meu marido que, lá pelo facto de o entrevistado ser meu amigo, isso não deveria nunca impedi-lo de escrever o que muito bem quisesse; e, do mesmo modo lhe dizia agora que o facto de eu ser mulher de um crítico que possivelmente o iria desancar, não tinha nada a ver com a nossa amizade.
E o Pacheco de Andrade foi à televisão. E apanhou uma descasca sem apelo nem agravo.
E foi assunto de que nunca mais se falou : eram dois homens completamente opostos, nunca se poderiam entender.
Um dia chego a casa e oiço o meu marido numa estranha conversa telefónica:
“ó homem, faça como eu digo… dobre lá o pano em três partes…agora ponha o bebé ao meio…e ate com dois alfinetes de cada lado…”
O meu marido estava a ensinar o Pacheco de Andrade a pôr a fralda ao filho.
Ficaram amigos para o resto da vida.
Se me lembrei hoje disto é porque acabei de ler que, por causa da crise, as fraldas de pano estão de novo no mercado, a tentar ganhar um território que, durante gerações, lhe pertenceu.
Dão imenso trabalho, pois dão; não há descanso, pois não. Mas, se não chegam para dar cabo da crise, podem ser uma óptima ajuda para a paz entre as pessoas.
«JN» de 20 Mai 11

domingo, 15 de maio de 2011

MAIO QUERIDO MÊS DE MAIO

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Basta às vezes um pormenor, ou uma antiga recordação, para um mês ser diferente dos outros

Por Alice Vieira

MAIO nunca era um mês igual aos outros.
De resto, pensando bem, -- e tirando os meses de Junho, Julho e Agosto que se juntavam na palavra maravilhosa e única que era “Verão” - nenhum mês era igual aos outros.
Janeiro era o frio e aquela tola crença de que um ano novo poderia ser diferente.
Fevereiro era o carnaval mesmo quando o carnaval não era em Fevereiro.
Março eram os aniversários da família inteira, meu Deus, nunca conhecera caso igual, irmãos, primos, tios, cunhados, toda a gente tinha nascido em Março. Era no que davam os ardores de Junho, lembrava-se de ouvir dizer em casa desde os tempos em que nem percebia o que isso queria dizer.
Abril eram as saudades revolucionárias que voltavam, e os infindáveis “e tu lembras-te?” , e a risota descambando na fatal pergunta” onde é que estavas a 25, ó camarada!”, a família dividindo-se entre os que estavam gloriosamente nos seus postos de trabalho, e os que estavam, não menos gloriosamente, a faltar à escola.
Depois com Setembro vinha o cheiro das vindimas, e do mosto a fermentar nas cubas, e o sobrinho génio de 12 anos logo a explicar por que é que os Estados Unidos deviam levantar o embargo. “O embargo a quê?, perguntava sempre alguém, “ o embargo a todas as cubas deste mundo, ora essa!” , e as pessoas calavam-se, com pena que não fosse já Outubro.
Porque Outubro era assim uma espécie de Janeiro antecipado, o início de muita coisa, das escolas, embora agora as escolas até começassem mais cedo, e os planos para uma vida melhor e mais saudável (ginásio, brócolos a todas as refeições, cigarros largados de vez).
Novembro era a passagem para o natal de Dezembro, as listas já a serem planeadas, os projectos das festas, a grande antecipação da maior festa do ano, a única que a fazia esquecer maus momentos, zangas, separações.
Pelo meio do calendário ficava Maio, “Maio, querido mês de Maio, em breve voltarás”, como ela dizia sempre, rindo por nunca ter entendido a razão de aquele mês lhe ter ficado tão encalhado na memória, ainda agora, não há manhã nenhuma em que não acorde a trautear aquela música, e a voz de D. Aurora ao ritmo do metrónomo em cima do piano, “pizzicato!,, Margarida! não deixes descansar os dedos em cima das notas, Margarida! não adormeças, é Maio que vai chegar, Margarida!”, e ela ralada.
Um dia D. Aurora chegou mais cedo, e encontrou-a afadigada ao piano, tentando acompanhar-se num tango de Gardel. Ainda hoje se lembra, os dedos nas teclas, “dó, ré, ré, mi, fá, mi, ré, mi, fá, sol”, e a voz em tremidos,“ por una cabeza /de un nobre potrillo/ que justo en la raya/ afloja al llegar”…e D. Aurora aos gritos como se a sala estivesse em chamas, e todos a correrem para ver o que tinha acontecido, mas não tinha acontecido nada, era só ela a trocar Schuman e o querido mês de maio por aventuras pouco consentâneas com meninas da sua idade e posição.
Gardel foi para o lixo, e o Maio-querido-mês-de-Maio-em-breve-voltarás voltou imediatamente ao seu lugar de sempre.
Com pizzicatos que ela nunca foi capaz de respeitar, e acordes que os dedos não decoraram nunca.
Até que por fim a família e D. Aurora desistiram dela.
Mas o mês de Maio tinha ficado para sempre contaminado.

«ACTIVA» de Maio 2011

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O MEU AMIGO JOÃO MARIA

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Por Alice Vieira

NESTES ÚLTIMOS tempos parece que anda qualquer coisa no ar que nos vai levando, um a um, aqueles amigos de que ainda precisamos tanto.
Dizem-me, em jeito de consolo, “já tinham uma certa idade”.
É mentira: nunca se tem uma “certa idade”. Porque nunca há uma “idade certa” para morrer.
Há amigos de que continuo a ter muitas saudades, e de quem ainda nem sequer tive tempo de fazer o luto - e, de repente, desaparece o João Maria Tudela.
Conhecia-o desde o dia em que, nos finais dos anos 60, ele me telefonou a pedir autorização para cantar poemas de uns jovens autores, que lera no “Diário de Lisboa-Juvenil”. Digo-lhe que não sou eu que tenho de dar autorização mas, de qualquer modo, previno-o:

- Olhe que são constantemente cortados pela censura. Nem sei como esses passaram. Os censores deviam estar distraídos.
- Não me importo – respondeu - Gosto, canto.

Musicou-os, cantou-os em espectáculos ao vivo, e incluiu-os num LP que editou.
Um dos poemas era da Hélia Correia, outro do Jorge Massada, dos restantes já esqueci o nome.
Ficámos amigo – ele sempre com uma enorme preocupação em tentar mostrar às pessoas que não era só o cantor de “Kanimambo”.
Falávamos ao telefone, almoçávamos muitas vezes – e era um prazer conversar com ele.
Ligou-me há poucas semanas, estava eu de partida para os Estados Unidos – e confesso que não lhe dei a atenção que devia. Mas achei-o, pela primeira vez nestes anos todos, muito preocupado com a família. A Filomena, o Joãozinho e a Carlota estavam sempre presentes em todas as conversas mas, desta vez, senti que o futuro deles o afligia muito.
Tentei acalmá-lo, devo ter-lhe dito qualquer coisa parva, género “isto tudo se resolve”, e prometi ligar quando chegasse.
Já não liguei.
Chego à Basílica da Estrela e ficamos todos nós, os seus amigos, naquela posição estranha de ter muita vontade de chorar mas de só nos rirmos, lembrados das histórias delirantes que com ele tínhamos passado.
E eu acho que é com o sorriso dos amigos que se ganha a eternidade.
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«JN» de 6 Mai 11

terça-feira, 3 de maio de 2011

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O SR. PEDROSO DE PROVIDENCE

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Por Alice Vieira

MAL ENTRO na loja e logo ele me diz “já a vi, já sei quem é e o que faz!”- abrindo de imediato o jornal da comunidade portuguesa, que conta a minha vida e o que ando a fazer desde que aterrei na costa leste dos EUA.

Há 50 anos que o Sr. Pedroso está atrás do balcão do seu “Friends Market”, na Brooks Street, de Providence. Sempre só ele, sozinho, na aparente fragilidade dos seus 90 anos, atendendo a freguesia.

Eu tinha andado pela cidade, feliz por ter encontrado todas as referências que procurava - casas, lojas, pontes, a estação – de uma série (“Providence”) que, meses a fio, a televisão passara, e agora , de repente, dava por mim a aterrar numa nesga de Portugal, numa loja que vendia tudo.

Prateleiras do chão ao tecto, atulhadas de garrafões de azeite, de óleo, garrafas de vinho, conservas, batatas, cebolas, trens de cozinha, detergentes, perfumes, sabonetes Ach Brito e Patti, galos de Barcelos, Nossas Senhoras de porcelana, bibelôs de gesso, tachos de barro, bolos, chocolates, canetas, blocos de papel, discos de vinil (“Vicente canta Afonso Lopes Vieira”…), números desgarrados da “Caras”,da “Visão”, e da “Maria”.

Mas do que verdadeiramente o Sr. Pedroso se orgulha (para lá dos portugueses ilustres que já entraram na sua loja, “até o Saramago!”) é dos dicionários de português, a cheirarem a novo, acabados de chegar, já conforme o acordo. Entristece-o que, na televisão da sua pátria, se fale tão mal :
- Ensine-os que não podem dizer “há três anos atrás!” Havia de ser há três anos à frente, não?
É o erro que mais lhe custa ouvir, fica logo com vontade de protestar. Prometo que farei tudo o que estiver ao meu alcance — e ele enche-me de amêndoas (“são da Confeitaria da Ajuda, já viu?”), de canetas, de calendários.

Vou já a sair, quando o ouço : “ah, e também vendo o “Jornal de Notícias”, mas a esta hora já não tenho nenhum.”

E sorri, na certeza de ter feito bem o seu trabalho de casa.
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«JN» de 22 Abr 11

sexta-feira, 15 de abril de 2011

DIAS ÚTEIS

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Por Alice Vieira

TODAS as manhãs, nestes últimos dez anos, fazia o mesmo percurso.
Com excepção para os dias de folga.
Aí mudava um bocadinho, embora os passos fossem sensivelmente os mesmos, nos mesmos lugares. Via apenas outros rostos, os dos dias de semana estavam já, àquela hora, encaixados nos seus guichés, nos seus balcões, atrás de secretárias.
Nos dias de folga era ligeiramente diferente, o rapaz da leitaria dizia “hoje vem mais tarde”, ela respondia “é o meu dia de folga”, sempre, durante estes dez anos que ali tem vivido.
Entretanto o rapaz envelheceu dez anos, tal como ela, até já tem um filho de 7 anos, soube-o pela porteira, porque ela não gosta de grandes intimidades. Sempre falou apenas o que era necessário falar. Nem os vizinhos consegue encaixar nos seus andares, é “bom dia” ou “boa tarde” se os encontra no elevador, e não mais que isso.
Há dez anos o rapaz da leitaria nem sequer tinha barba e fazia uma voz esganiçada quando ela entrava, “bica e croissant para a D.Laura!”.
Às vezes não lhe apetecia nada bica e croissant, mas tinha a sensação de estar a cometer qualquer pecado se, em vez disso, pedisse meia de leite e um queque.
- Vem hoje mais tarde! — diz-lhe o rapaz da leitaria
E ela já não responde “é o meu dia de folga”, porque a partir de agora todos os dias são de folga.
Começa a pensar em quantos cafés bebeu, em quantos croissants comeu nestes anos todos, mas desiste, não são pensamentos próprios para a sua idade, e na sua idade só se devem ter pensamentos úteis, que sirvam para alguma coisa.
Tal como as conversas.
- Como vai o seu filho na escola? - pergunta ao rapaz, na hora de pagar, e logo se admira das suas palavras, que necessidade tinha de entrar em intimidades .
- Lá vai…- respondeu ele, admirado também. (Mais tarde dirá ao patrão, “a velhota do 54 estava hoje muito esquisita”, e o patrão há-de responder, “é da idade, coitada! qualquer dia dá-lhe um badagaio e vai desta para melhor”)
Ela levanta-se da mesa, olha para o relógio como sempre tem feito, embora, a partir de agora não haja horários a cumprir, e procura as chaves dentro da mala.
Atravessa a placa, resmunga qualquer coisa quando vê o caixote do lixo ainda na rua, entra em casa.
Fecha a porta e encosta-se a ela.
- E agora? – diz para si própria.
É então que ouve o telefone.
Ninguém lhe costuma telefonar para o fixo, está quase decidida a nem atender, mas muda de ideias e corre até à sala, e do lado de lá perguntam “é a D. Elisa?”, e ela ri e responde, quase nem se reconhecendo, “não, é a D. Laura, não serve?”
E a pessoa deve ter sentido de humor e nenhuma pressa, ou se calhar também está pela primeira vez em casa e não no emprego, porque ainda fica uns minutos à conversa, rindo de coisa nenhuma.
Quando desliga, a casa parece-lhe cheia de barulhos que não reconhece. Quem estará no andar de cima com aspirador àquela hora?
Então volta a vestir o casaco, e vai ao café, e desta vez há-de pedir meia de leite e um queque, e há-de saber a história toda do filho do rapaz — tudo, para conseguir esquecer a sua própria casa, à luz da manhã de um dia útil.

«ACTIVA» de Abril 2011

sexta-feira, 8 de abril de 2011

UM CURSO SUPERIOR

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Por Alice Vieira

- Ó PROFESSORA, que prazer levá-la no meu táxi!”

Depois de um dia de muito trabalho, agrada-me ser recebida tão efusivamente, embora emende o tratamento, e diga que não sou professora, mas ele ri-se e diz “claro que é, então eu não sei!, até já foi à escola dos meus netos!”
Desisto, enquanto ele fala, olhando de vez em quando pelo retrovisor a ver se estou a segui-lo.
Conta-me a vida toda, desde os tempos difíceis de infância numa aldeia perto da Guarda, onde só se lembra de ter calçado sapatos no dia em que foi fazer o exame da 4ª classe, até à ida para África e o regresso em 75.
Tudo para me explicar o amor pela sua professora, e o desgosto que sentiu quando ela morreu, “igual ao que senti pela morte da minha mãe”, garante.
“Porque, ó Professora!, a nossa professora de instrução primária era mesmo importante! Agora é que já ninguém lhes liga nada, mas no meu tempo – olha pelo retrovisor e corrige--”no nosso tempo, a escola era uma coisa séria. E o que a gente aprendia!...”
Volta a olhar pelo retrovisor e eu aceno com a cabeça, claro, uma 4ª classe tirada há 50 e tal anos era outra coisa, e ele dá quase um salto, “outra coisa?? Era um curso superior! A gente saía a saber tudo! A gente fazia problemas complicados, a gente sabia rios, sabia serras…”
Nova piscadela pelo retrovisor.
“Ó professora, ainda se lembra das serras? Era assim, deixe cá ver… Peneda, Suajo, Gerês, Arga…” E lá vai ele serras acima, serras abaixo, entre curvas e contracurvas, e de repente estou a chegar a casa, e ele “Nogueira, Bornes, Marão…”, e eu “é já aí nessa esquina!”, e ele “Mogadouro, Moncorvo, Gralheira…”, e eu, “é mesmo aqui!”, e ele lá trava às quatro rodas, felizmente não há ninguém atrás de nós, pago, dá-me o troco, deseja-me muitas felicidades e, enquanto abro a porta, remata: “Leomil, Marofa e Lapa!”
Já vou a entrar em casa e ele, da janela do táxi, ainda grita “Era um curso superior, ó Professora!”
Certamente já a atacar as serras de outro sistema.

«JN» de 8 Abr 11

sábado, 26 de março de 2011

A CHEGADA DA PRIMAVERA

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Por Alice Vieira

TENHO a casa cheia de lírios.

Acontece que os lírios e eu nunca fomos amigos íntimos.

Para mim, lírios eram apenas aquela flor que costumava entrar sempre nas histórias do Zé Gomes Ferreira, à mesa do Monte Carlo (que então nem sonhava que um dia viria a chamar-se Zara) .

Na sua juventude, o Zé Gomes Ferreira tinha publicado uma colectânea de bucólicos poemas, a que chamara “Lírios do Monte”. Anos mais tarde, num passeio ao campo com um amigo, umas flores chamaram-lhe a atenção: "que bonitas! Que flores serão aquelas?” E o amigo respondeu: "então, são os lírios do monte de que tu falaste tanto no teu livro…”

O Zé Gomes contava isto muitas vezes, e ria muito, e nós ríamos com ele, e ele dizia-me, a mim, jovem a tentar entrar naquele mundo privilegiado, "nunca escrevas sobre aquilo que não conheces! Lembra-te sempre da vergonha dos meus lírios…”
Foi lição que nunca esqueci.

Mas voltando aos lírios.

Sempre me pareceram flores tristes, daquelas que se mandam para aos funerais, tombando ao peso das faixas de “saudade eterna”.

Por isso quando há dias cheguei a casa e encontrei à minha porta um ramo gigantesco de lírios – os meus vizinhos são gente honesta, nunca me roubam as flores que tantas vezes se estendem pelo patamar à minha espera…- até me senti mal.

Mas as palavras do amigo que as mandara reconciliou-me com elas. Garantia ele — que sabe tudo sobre flores, e tem o dom de adivinhar quando eu preciso delas mais que de remédios - que os lírios são as flores da primavera.

E rematava:

“És como o Zé Gomes. Não percebes nada de lírios”.

E ali fiquei, parada no patamar, os lírios aos meus pés, chaves na mão e a tentar atinar com a fechadura, e a rir como há muito tempo não ria – e o meu riso a misturar-se com o riso do Zé Gomes, de repente tão vivo, e com o riso do Carlos, e com o riso do Mário, e com o riso do Abelaira, e com o riso de todos nós à mesa do Monte Carlo.
Todos, de repente, tão vivos.

E foi assim que a primavera entrou, finalmente, em minha casa.

«JN» de 25 Mar 11

sexta-feira, 11 de março de 2011

UMA QUESTÃO DE PORMENOR

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Por Alice Vieira

TODOS SABEMOS como as vozes ficam distorcidas através de altifalantes.
Mas que as palavras se pudessem transformar noutras – isso nunca me tinha acontecido.
Estava eu na sala de espera de um hospital, aguardando que, do altifalante, uma voz dissesse o meu nome.
Li o jornal, fiz as palavras cruzadas, tirei da mala uma edição de bolso de um livro do Machado de Assis, ao mesmo tempo que ia ouvindo os nomes que desfilavam.
Até que a espera me pareceu longa demais. Tenho frequentado com regularidade aquele hospital, e nunca me acontecera esperar tanto.
Cheia de sorrisos e de “se faz favor” e de ”desculpe” — lá fui ao balcão das informações saber o que se passava.
- Já foi chamada há mais de meia hora! – gritam-me – Estão para ali na conversa, nem ouvem, e depois queixam-se!
Eu não tinha estado na conversa, e tenho bom ouvido.
Protestei eu, protestou ela, voltei a protestar eu – até que a convenço a ir lá dentro informar-se melhor.
Não demorou nem cinco minutos.
Ar triunfante.
- Claro que a chamaram! Maria de Jesus Pereira! Chamaram-na até mais do que uma vez!
Explico-lhe, com a calma possível, que eu não me chamo Maria, “Jesus” é o meu segundo nome, e “Pereira” é um dos muitos apelidos com que carrego, mas nem o último, nem sequer o penúltimo. Adianto-lhe que estou habituada, em hospitais, a que me chamem Alice de Jesus Fonseca (os dois primeiros nomes e o último, como é normal nestas circunstâncias) mas nunca, até então, Maria de Jesus Pereira.
Olha para mim e encolhe os ombros:
- Se a gente se preocupasse com pormenores desses…
E manda-me entrar.
A minha neta mais nova, ainda sob os efeitos do Jardim-escola, quando ouve alguém perguntar “quem quer….” - levanta logo o braço, mesmo antes de saber do que se trata.
Acho que lhe vou seguir o exemplo: assim que o altifalante chamar alguém, apresento-me logo.
Se não for eu, paciência. Quem é que se preocupa com pormenores desses.
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«JN» de 11 Mar 11

sexta-feira, 4 de março de 2011

A LEI DE QUEM?

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Por Alice Vieira

OLHOU PARA O ÉCRAN do telemóvel e voltou a não atender. Ainda estava aborrecida. Farta daquele tom de superioridade com que ele lhe falara. Está bem, não era de grandes leituras, mas não era obrigada a conhecer toda a gente que ele conhecia, ou era?
Fez um esforço para recordar o nome que ele tinha dito.
Qualquer coisa que soava a “Mârfi” mas que se calhar até nem se devia escrever assim, era bem capaz de levar “ph” pelo meio, ou “y” no fim, estrangeirices.
Ele fizera questão de a acompanhar à entrevista, mas já tinham saído atrasados, e depois o trânsito, e o estacionamento impossível, quando entraram onde é que já iam as três horas. A rapariga da recepção suspirou fundo, olhou para o relógio, e disse-lhe que esperasse, que ia ver se conseguia que ela entrasse no fim.
Ela verificou mais uma vez a papelada e descobriu que lhe faltava um dossier, o que atestava o bom trabalho feito na empresa anterior, donde saíra só porque a crise obrigara a uma drástica redução de pessoal.
Foi então que ele começou com aquele disparate todo, que não valia a pena sequer ela esperar para ser recebida, estava na cara que não ia conseguir nada, o atraso de quase uma hora, o dossier que faltava, e o ar esbaforido dela, caramba!, quem vem a uma entrevista de emprego tem de se cuidar um pouco - e ela a dizer que eram coisas que aconteciam, e que até se tinha cuidado mas a chuva e o vento e a corrida para chegarem ali é que a tinham posto naquele estado, mas também não era nada demais, nem aquilo era um concurso de beleza.
“Não vai dar nada”, repetia ele, “é a lei de Mârfi…
“De quem?”
Ele olhou-a, espantado:
“De Mârfi... Não me digas que não conheces a lei de Mârfi?!”
“Porquê? Devia?”
“A Lei de Mârfi!”, repetia ele, “ se uma coisa puder correr mal, corre mal de certeza! Se houver três maneiras de um coisa correr mal, ainda há uma quarta que corre pior! Quando uma coisa começa mal, só pode piorar!”
Parou para tomar fôlego:
“Nunca ouviste?”
“Já. É aquele provérbio que a minha avó está sempre a repetir: o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”
E ele a barafustar, que ela era a ignorância em estado puro, qual provérbio, qual avó, aquilo era a lei de Mârfi, como é que ela podia ter chegado àquela idade sem saber a lei de Mârfi!, e se as coisas tinham começado mal não valia a pena esperar porque os resultados só podiam ser piores, o melhor era irem embora.
Ela insistiu, ele que fosse, que ela ficava. Ele foi. Ela ficou.
Em casa, cansada de todas as horas em que olhara para a menina da recepção, vendo a porta do gabinete abrir e fechar, pessoas a entrarem e a saírem, e ela na cadeira, à espera — não lhe apeteceu atender as chamadas dele. Se calhar até era capaz de estar com esse tal Mârfi, a rirem ambos à sua custa.
Depois, lá cedeu.
“Só agora?”
“Que é que queres, entraram mais de 20 antes de mim. Mas depois, olha, nem cinco minutos lá estive. Foi entrar e sair.”
“Eu não disse? Começou tudo mal… Mais valia teres vindo comigo!”
Despachou-a rapidamente, prometeu-lhe um café para o dia seguinte e desligou.
E ela ficou a olhar para o telemóvel, com pena de não ter tido tempo de lhe dizer que começava a trabalhar no princípio da semana.
Com pena de nem lhe ter pedido que agradecesse por ela a esse tal Mârfi, fosse ele quem fosse, com “ph” pelo meio ou “y” no fim, que de certeza tinha metido uma cunha - e das fortes.
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«ACTIVA» de Março 2011

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UMA QUESTÃO DE COIMAS

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Por Alice Vieira

O MUNDO está louco. (Isto por acaso soava melhor se fosse “tá”, mas o acordo ortográfico, que transformou todos os “espectadores” em “espetadores”, ainda não chegou a tanto).

Claro que há as grandes, as enormes, as desvairadas loucuras, que implicam sangue e mortos e massacres, com as pessoas a tentarem sobreviver, sabe-se lá como, e a tentarem fugir, sabe-se lá para onde.

Mas depois há aquelas loucuras pequeninas, quase nem se dá por elas, começam devagarinho, uma pequena notícia num dia e no outro já se esqueceu, que o pessoal tem mais que fazer.

Então parece que pelos Açores há quem proponha castigar os pais que não acompanhem os filhos nos estudos.

Mas castigar mesmo.

Com multas e perdas de direitos sociais.

“Coimas”, para parecer ainda pior. (Quando uma multa passa a coima, estamos feitos.)

Imaginem lá no Pico, nas Flores, na Graciosa, seja onde for, um desgraçado a chegar a casa derreado do trabalho, e ainda ter de dizer «ó Zé, vai lá buscar Os Lusíadas para a gente dividir as orações, senão o professor queixa-se, o governo sabe, e lá se vai o abono!»

No nosso país nada se constrói sem ameaças ou mão pesada.

Alguma coisa não corre bem? Coima para cima dela!

Não há sequer a preocupação de, como me disse um dia um extraordinário polícia que me desculpou uma infracção (levezinha…), “fazer pedagogia”.

Não seria preferível, nos Açores (ou em qualquer outro sítio…) ,explicar aos pais que têm de saber se os seus filhos vão ou não vão à escola, têm ou não têm aproveitamento, essas coisas?

Fazer pedagogia?

Não.

À partida, é logo a ameaça, é logo o chicote.

A gente manda com a coima (hoje estou apaixonada por esta palavra…) e depois logo se vê.

Se, quando os meus filhos andavam na escola, esta lei estivesse em vigor, as finanças tinham-se endireitado num instante: nunca me lembro de os ter ajudado nos trabalhos de casa, nem de alguma vez lhes vistoriar os cadernos.

(O que me vale é viver em Lisboa, senão ainda esta tardia confissão me levava a ser condenada, e a pagar retroactivos…)
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«JN» de 25 Fev 11

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

AS VELHINHAS INGLESAS

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Por Alice Vieira

DEPOIS da família real e dos polícias, as velhinhas são uma instituição inglesa.
Nenhum país tem velhinhas como as inglesas.
As francesas são terríveis, espiando-nos debaixo dos seus chapelinhos cinzentos.
As nossas enchem autocarros e urgências de hospitais só a falar de doenças, ou deixam-se enganar por qualquer caramelo que lhes bata à porta a prometer fortunas se elas lhes passarem para as mãos as economias guardadas no colchão.
As inglesas, não.
Agatha Christie olhou-se ao espelho e depois olhou à sua volta, e percebeu logo que o poder estava nelas.
Miss Marple, entre duas carreiras de meia e liga, ou entre duas chávenas de Earl Gray, sorri para nós, “oh dear, oh dear!”, e diz-nos, na sua voz mansa, quem matou o diplomata, ou o vizinho de cima, ou a estrela de cinema. E descobrimos que estava tudo diante dos nossos olhos, ela nem sequer faz caixinha, como o antipático do Poirot, que descobre tudo só porque tem elementos que nós não temos…Homens… (E belgas…)
Desde então, as velhinhas inglesas têm sido tema de livros, filmes, séries, etc. Quem não se lembra da extraordinária Mrs. Wilberforce, de “O Quinteto era de Cordas”, que, entre velhas amigas, scones, e Mozart, deita por terra o projecto de cinco assassinos encartados.
Um encanto, as velhinhas.
Só que, até mesmo em Inglaterra, a tradição já não vai sendo exactamente o que era...
E quando aqueles seis gatunos de meia tigela, em Northampton, se lembraram de assaltar uma joalharia — uma velhinha apareceu.
Vestida de vermelho – mas velhinha.
Só que, de repente, sem a doçura de Miss Marple ou o sorriso de Mrs. Wilberforce, vá de se meter ao estalo, ao soco e ao murro a todos eles, com uma das mais mortíferas armas que uma velhinha pode usar: a mala de mão.
Os ladrões foram apanhados — e ainda agora devem estar a tentar perceber como é que, de um momento para o outro, as velhinhas inglesas ficaram tão diferentes.
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«JN» de 11 Fev 11

sábado, 5 de fevereiro de 2011

PRINCESAS FELIZES

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Por Alice Vieira

DETESTAVA festas de escola.

As mães a gabarem as gracinhas dos filhos, e os pais com as câmaras de vídeo apontadas ao palco para imortalizarem aquele segundo em que a Martinha, no seu fato de borboleta, se enganou no passo mas disse adeus à tia Henriqueta , ou em que o João Maria se estatelou entre as meninas e desatou num berreiro que parecia não ter fim, mas que engraçadinho que ele ficava quando fazia birras!

Por isso quando Miguel há tempos telefonara a dizer que este ano ia ele com a filha à festa de carnaval da escola, ela até tinha suspirado de alívio.

Claro que devia ter logo desconfiado.

O Miguel nunca na sua vida tomara nota de nada (“não sei como consegues viver sem agenda…”, repetia-lhe ela muitas vezes, nos cinco anos que aguentara casada com ele), não era agora que ia começar.

Ela devia ter-se lembrado de lhe telefonar todos os dias, ou de o bombardear com SMS, ou e-mails — mas a verdade é que descansara, e só o recordou mesmo na véspera.

- Ó diabo! Passou-me completamente! Tenho uma reunião e a esta hora já não dá para desmarcar… Mas para o ano não falto!

Mas ela está-se nas tintas para o ano, o que ela queria era que ele viesse hoje, agora, dentro de uma hora no máximo.

Porque ela também tem uma série de compromissos a que não pode faltar, e agora está ali no café, telemóvel colado à orelha, a filha vestida de Fiona sentada na sua frente, enquanto ela tenta arranjar solução.

São quase horas, a miúda não entende por que ainda ali estão, e murmura

- Quem é que me leva à festa, mãe?

E ela nem lhe responde, marca novamente um número, desliga, volta a marcar,

- Mãe, quem é que me leva…

- Está calada! Não me enerves mais do que eu já estou!

E passa o telemóvel para a outra orelha, mas ninguém atende, parece que toda a gente se esqueceu dos telemóveis em casa, ou estão longe deles, ou simplesmente têm-nos fechados.
Olha para o relógio, tira um cigarro da mala mas logo o volta a enfiar no maço, ali não se pode fumar, e os minutos voam.

- Mãe...

Faz que não a ouve, e volta a clicar nas teclas, e então, de repente, alguém atende, e ela respira fundo, e dá logo a ordem, rápida e seca, nem “olá,” nem “estás onde”, nem “então é assim”, nada.

- Tens de ir com a miúda à festa da escola, vem já ter ao café, depois explico.

Telemóvel desligado, sem dar possibilidade de resposta.

- Era o pai, mãe? — pergunta a miúda, tentando sorrir.

- Mas qual pai… Alguma vez o teu pai tem tempo para nós? Esqueceu-se outra vez de ti, está claro…

- Então quem é que me leva à festa, mãe?

Um fiozinho de voz, quase a tremer.

Ela bebe finalmente a bica, decerto gelada de tanto esperar, e enfia o telemóvel para dentro da mala.

- O Fernando. Está aqui está a chegar.

A filha baixa os olhos.

- O Fernando?...

- Sim, o Fernando. Que é que isso tem?

- Queria o pai…

- Ora…O teu pai ou o Fernando, que diferença faz? O que é preciso é chegares a horas.

A miúda leva as mãos aos olhos.

- Não me faças cenas , que farta de cenas ando eu…

Não faz.

Deixa apenas cair algumas lágrimas no vestido, mas logo as tenta enxugar com a mão.

Ela é uma princesa.

E as princesas, como dizem as histórias que ela ouve na escola, vivem felizes para sempre.
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«ACTIVA» de Fev 2011

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

EM DEFESA DAS AVÓS

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Por Alice Vieira

DEI COMIGO há dias a assistir a um programa, destinado ao público feminino, onde se fazia, mais uma vez, a recorrente afirmação de que não há melhor infantário nem escola infantil do que a casa dos avós.

Confesso que acho estranho que, num tempo em que as avós são cada vez mais novas, e cada vez mais activas, não se ergam vozes feministas a contrariar essa peregrina ideia de avó-fada-do-lar.

Parece que ser mulher, com todos os seus direitos, e no pleno gozo das suas capacidades, tem prazo de validade.

Ficar em casa a tratar de marido e filhos — isso nunca.

Ficar em casa a tratar de marido e netos – parece quase um dever.

Claro que não estou a falar destes terríveis tempos de crise que atravessamos, em que é preciso cortar despesas e a casa da avó é mais barata que um infantário. Mas isso é uma solução de recurso, uma emergência.

Mas quem falava naquele programa, não falava de crise.

Falava do melhor para as crianças. Em todos os tempos.

Como se sabe, nem sequer é o melhor para as crianças que, desde pequeninas, precisam de regras, de aprender a viver com os outros, e de entenderem que não são o centro do mundo.

E se não é o melhor paras as crianças, muito menos o é para as avós.

Que, tal como as mães, trabalham.

Que, tal como as mães, contribuem para fazer progredir este país.

Quando se diz que as mães trabalham fora de casa, toda a gente acha normal e louvável, pois claro!, já lá vai o tempo de ser doméstica!

Mas quando uma avó explica que não pode, por muito que os ame de paixão, ficar com os netos em casa, porque sai às 8 da manhã e só volta às oito da noite, ou porque tem um trabalho para entregar, todos olham para ela como se estivessem diante de uma aberração da natureza.

E era aí que eu gostava de ver as feministas saírem em sua defesa. Mas não saem.

Se calhar porque também elas precisam de alguém a quem deixar as crianças.
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«JN» de 28 Jan 11

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

NA MORTE DE VÍTOR ALVES

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Por Alice Vieira

ESTAVA EM VISEU, quando um SMS me avisou: “Morreu o Vítor Alves”.
Infelizmente era uma notícia daquelas que se esperam — mas que, no fundo, nunca se esperam. Porque todos os nossos amigos são eternos e, quando descobrimos que não são, temos muita dificuldade em acreditar.
Vítor Alves pertencia àquele grupo de homens a quem devemos viver hoje em liberdade e em democracia. Para as gerações mais novas, isto parece um dado tão adquirido que nem lhes passa pela cabeça que alguma vez pudesse ter sido doutra maneira.
Mas foi. Durante muitos anos.
Até que um dia estes homens decidiram arriscar tudo -- vida, liberdade, carreira, saúde, família—em nome de um sonho que, com desvios e loucuras e erros e recuos, ainda é o que hoje nos mantém vivos e actuantes.
Esta é uma dívida que nunca poderemos pagar — nem eles estavam à espera disso.
Mas é muito triste descobrir como as pessoas têm a memória curta.
Foi vergonhosa a maneira como a morte de Vítor Alves foi tratada nos meios de comunicação — já para não falar das muitas horas de um velório quase vazio, quando deveria ter estado SEMPRE, em todas as horas, cheio de gente.
Atirada a notícia para o rodapé dos telejornais — que se enchiam do assassínio de Carlos Castro em Nova Iorque, com direito a um rol de jornalistas em directo, e entrevistas a meio mundo.
Reduzida, num jornal dito de referência, no dia a seguir ao enterro, a uma pequena fotografia em que se via a parte de trás do carro funerário e dois homens a ajudar a colocar o retrato junto do caixão — enquanto páginas inteiras continuavam reservadas ao crime passional de Nova Iorque.
Mas Vítor Alves não se meteu em escândalos, não morreu num hotel de luxo em Nova Iorque, não alimentou crónicas cor-de-rosa, nem sequer pertencia ao jet-set.
Pecados por demais suficientes para o atirar para o limbo dos que não merecem mais que uma breve evocação.
Mas se calhar é aí que ele fica bem — ao lado dos que deram tudo pela pátria, e que a pátria, vergonhosamente, esqueceu.
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«JN» de 14 Jan 11

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O TRICOT

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Por Alice Vieira

ABRIU A JANELA na manhã daquele domingo de Janeiro, suspirou fundo e murmurou:
“Desta vez é que vai ser”
A filha tinha acabado de se arranjar, pronta para o ritual dos almoços de domingo, quando ela lhe descobriu um piercing na língua e uma tatuagem a meio do pescoço.
Engoliu em seco e repetiu:
“Desta vez é que vai ser”
Desde miúda que sente sempre que os primeiros dias de Janeiro são mágicos, porque tudo pode acontecer.
A irmã ria-se dela.
A irmã ria de tudo, parecia viver noutro mundo.
Mesmo as coisas difíceis de suportar (os ralhos do pai, agora a morte da mãe, a deixá-la sozinha; os namorados que apareciam e desapareciam da sua vida) era como se não lhe tocassem: sentava-se no sofá, e tricotava o dia inteiro.
Desde muito nova que era assim.
A mãe ralhava, o pai ralhava, os namorados ralhavam — e ela corria a enfiar-se no sofá a fazer malha.
Ela fora sempre muito diferente da irmã, se gritavam ela gritava também, respondia sempre, não se ficava.
Mas ainda continuava a pensar em Janeiro como num tempo de promessas cumpridas, de novos planos postos em prática.
Por isso logo nos primeiros dias do ano limpava a casa com um vigor renovado, deitava fora baldes e baldes de lixo acumulado, respirava outro ar.
Mas havia rituais a que não podia fugir.
Quando há dois meses a mãe morrera, pensou que o ritual dos almoços de domingo morrera com ela. Os silenciosos almoços de domingo que acabavam, inevitavelmente, com o marido aos berros assim que entravam em casa, e a filha a berrar ainda mais.
Mas logo a irmã avisara que tudo ia ser como dantes, e que ninguém se lembrasse de faltar.
A irmã tinha uma maneira subtil de os fazer rebentar de remorsos, quando murmurava, entre dois sorrisos, “ a mãe não ia gostar nada…”
Então lá iam todos, cada um sonhando estar noutro lugar, com outras pessoas, falando de outras coisas.
À uma hora em ponto a terrina da sopa vinha para a mesa e o silêncio era geral.
“À mesa não se conversa”, tinha sido sempre a filosofia dos pais. Por isso os silenciosos almoços de domingo eram um suplício, que só terminava quando a irmã se levantava da mesa e começava a tricotar — e cada um podia ir à sua vida.
“Que seca…”murmurava a filha, vestida de preto dos pés à cabeça, a viver o seu período gótico.
(No primeiro domingo a seguir ao enterro, a irmã olhara para a miúda e ficara imenso tempo abraçada a ela a fazer-lhe festas no emaranhado do cabelo, pensando que o preto era a expressão do seu desgosto pela morte da avó, e ninguém teve coragem de a desiludir)
“Estou a ficar sem pachorra nenhuma para estas fantochadas”, murmurava o marido, desfazendo finalmente o nó da gravata.
“Tu nunca tiveste pachorra para nada…”, respondia ela.
Era o rastilho. E logo começava a zaragata, ela a dizer coisas que até nem queria, ele a dizer coisas que até nem pensava, a filha a ameaçar tipo bazar dali rapidamente, se aquela cena tipo não acabasse.
Hoje lá vão todos de novo, em romaria.
E ela tem a certeza de que o regresso a casa vai ser complicado, porque o marido ainda não descobriu o piercing nem a tatuagem da miúda e, quando descobrir, a discussão vai ser das valentes. Discussão em casa, evidentemente, porque a irmã não permite coisas dessas lá em casa, “a mãe não ia gostar nada”.
Suspira fundo mais uma vez, antes de fechar a janela.
“Desta vez é que vai ser…”, murmura.
Desta vez é que se vai encher de coragem e pedir à irmã que a ensine a fazer malha.
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«Activa» de Janeiro 2011

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

EUROPEUS, QUE BOM!

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Por Alice Vieira

DESCULPEM LÁ mas eu, se fosse americana, tinha-me sentido muito ofendida por um cão me ter desejado bom ano.
De certeza que toda a gente viu na televisão, passou em todos os canais, com direito a repetições: Barak Obama e a mulher, em duo natalício, mandavam os seus votos de Boas Festas a todo o povo americano. Em nome de ambos,”e também de Malia, e de Sasha” — e vai a Sra. Obama, sorridente, e acrescenta: “e de Bo!” O que o marido reafirma, evidentemente : “e de Bo!”
Bo é o cão da família Obama. Cão de Água português, como toda a gente sabe, o que faz com que tenhamos um infiltrado na Casa Branca.
Mas nem o meu mais acérrimo patriotismo aceita que um cão me deseje Boas Festas. Era só o que mais faltava.
Eu até gosto do casal, palavra!, e só não votei nele porque não pude, mas festejei a vitória cá em casa com um grupo de amigos, champanhe, e tudo aquilo a que a alegria tem direito.
E eu até percebo que os 48% de popularidade não sejam de molde a deixá-lo muito tranquilo, e que portanto há que recorrer a todas as estratégias de marketing para recuperar quem se perdeu.
Mas há limites.
Imaginem que o presidente Cavaco Silva, na mensagem de Ano Novo, exprimia os seus votos em dueto com a mulher, trazendo à liça a família toda, “e também em nome do Bruno e da Patrícia e da Mariana, e do Afonso…”, etc, etc, etc - que o nosso presidente, em número de familiares, leva a palma ao americano.
Já imaginaram? E olhem que eu não incluí cão nem gato nem passarinho nem tartaruga, que não sei se existe lá por casa.
Já pensaram nas reacções? Na risota? Nas anedotas do dia seguinte?
Não há dúvida: ter quase 900 anos de história em cima dos ombros é bem diferente do que ter pouco mais de 200.
Deixem-me ser elitista: ser europeu (está bem, somos velhos; está bem, estamos gastos) ainda é uma coisa muito bonita!
E bom ano para todos!
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«JN» de 31 Dez 10

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUANDO ELES NOS DEIXAM

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Por Alice Vieira

ENTRO na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta.
Desde ontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro portas, fecho portas, olho em volta, como se isso chegasse para o fazer voltar a casa.
Foi a primeira vez que passou a noite fora.
E sem aviso.
Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, de uma palavra de conforto. Para isso é que se inventaram as amigas.
Nada feito.
Riem-se de mim. Deve ser a isto que se chama “solidariedade feminina”.
“Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, mas isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!
“E o meu? Ao fim de um ano, adeuzinho!”
Estremeço.
Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.
Elas voltam a rir.
“Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver, nunca mais te entendes com ele…Vem mudado, com uma linguagem diferente… “
Desligo o telefone.
A minha filha também não me ajuda:
“Ó mãe, não penses mais nisso, procura mas é um novo…
“Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar”
“Isso é o que dizem todos”
Tento ocupar o tempo — mas sem ele é impossível.
Sem ele não consigo ouvir música.
Nem ler um jornal.
Nem partilhar histórias.
De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.
A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.
“Quem te viu e quem te vê… - murmurava ela — “Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida…E agora…”
E agora — oh felicidade! — ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza.
Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que me diz:
“Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, mais um anti-vírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 170 euros, mais IVA.”
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«JN» de 17 Dez 10

domingo, 5 de dezembro de 2010

RECORDANDO CARLOS DE OLIVEIRA

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Por Alice Vieira

QUANDO CHEGA Dezembro, começamos a notar que à mesa familiar falta cada vez mais gente.
“Mesa familiar” é, no fundo, a metáfora que usamos para nesta altura abraçarmos um pouco mais os amigos, e ficarmos felizes só pelo facto de eles estarem ao nosso lado.
Mas ao nosso lado vai havendo cada vez mais lugares vagos.
A minha mesa familiar ainda não se habituou às ausências do João Aguiar, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo, do Raul Solnado, da Mariana Rey Monteiro, todos eles ainda tão dentro de mim.
Mas, de repente, chega-me uma terrível e inesperada saudade de alguém que há muitos anos desapareceu da minha mesa.
Tudo por causa de um programa que a RTP-2 passou, dedicado aos “Grande Livros”.
Naquela noite, o livro era “Uma Abelha na Chuva”, do Carlos de Oliveira.
É um grande romance da nossa literatura, e foi bom recordarmos as imagens do filme do Fernando Lopes, e ouvir falar dele (a Laura Soveral e a sua voz incomparável…)
Mas o que sobretudo me marcou foi o rosto do Carlos de Oliveira — aquele olhar que entrava dentro de nós e nos dizia tudo o que era preciso, aquele sorriso que me recebia sempre, quando eu chegava à sua mesa do “Monte Carlo”.
Ele e o Zé Gomes Ferreira — sempre. Depois às vezes por lá caíam o Abelaira, o Mário Dionísio, tantos outros.
Mas o Carlos e o Zé Gomes eram a minha âncora. E foram a minha verdadeira universidade. Eu, vinte e poucos anos, deslumbrada no convívio diário com gente que nunca pensara vir a conhecer.
E, de repente, quando a revolução de Abril dava os seus primeiros passos, o Carlos de Oliveira morre. De um dia para o outro.
Nunca perdoei ao destino, e acho que aquela geração mais nova que privou com ele nunca mais se recompôs.
Fosse o que fosse que fizéssemos ou escrevêssemos, pensávamos sempre: “o que é o Carlos dirá disto”.
Ele era o rigor, a coerência, a lucidez em estado puro.
Ele era a nossa consciência moral.
Nunca mais tivemos outra.
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«JN» de 3 Dez 10