Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
JÁ VOLTEI ao colégio.
A minha mãe obrigou-me a vestir todos os casacos que encontrou no roupeiro, e não descansou enquanto não me enfiou pela cabeça abaixo um boné de fazenda aos quadrados castanhos e pretos.
Fico horrível de boné.
Mas a minha mãe diz que aquele é a última moda em bonés, que o meu pai tem um igualzinho, comprado no Old England.
A minha mãe vai à abertura da estação do Old England, na Rua Augusta, como outras pessoas vão à abertura da temporada no São Carlos: enfia um vestido verde que só usa em ocasiões especiais, mitenes, e um chapelinho em cima dos bandós.
A Rosa arranja a mesa da casa de jantar, com pratinhos de bolachas Marselhesa e um bule de chá de tília, para ela se sentir mais reconfortada no regresso — não esquecendo a garrafinha de Anisette, porque não há nada como um cálice de licor para uma pessoa ter alma nova.
Então, quando regressa das compras, senta-se à mesa, com ar de imensa felicidade, e murmura, como se recitasse:
- “Toda a elegância se curva diante do rei da elegância”.
(Acho que é assim que vem nos anúncios dos jornais)
E depois de uns minutos de silêncio, acrescenta:
- A loja merece bem o reclame.
E ataca as bolachinhas. E o licor.
Mas isto não quer dizer que o meu boné não seja horrível.
Então lá fui até ao colégio, subi a Rua das Pedras Negras, sempre com esta chuva miudinha que não há meio de parar.
Lá se passou o tempo, pelo meio das regras-de-3, juros e quebrados, e as declinações do latim, e o “D. Jayme” que é preciso saber de cor e nunca mais me entra na cabeça.
Com o meu antigo professor, tudo era diferente.
Lembro-me que um dia saímos da escola com ele, subimos até à Travessa do Almada e depois ele apontou para uma parede e disse:
- Quem é capaz de ler o que aqui está?
Ficámos a olhar para ele, sem entender, era uma parede como outra qualquer, com umas placas muito velhas lá pelo meio.
Ele fez-nos olhar muito bem para elas e disse que eram lápides, e o que de mais antigo restava em Lisboa do tempo dos romanos.
Depois leu o que lá estava escrito em latim.
Já não me lembro de tudo, claro. Mas lembro-me de o ouvir dizer “Felicitas Júlia”, e de ele nos explicar que era aquele o nome da cidade de Lisboa no tempo de Júlio César.
De cada vez que passo por ali, lembro-me sempre do meu professor.
Chamava-se Manuel Buíça.
Há dois anos, naquele dia em que eu vinha da rua Augusta com a minha avó, ele pegou numa carabina e matou o rei. E logo de seguida alguém o matou a ele.
Mas hoje não quero pensar nisso.
Hoje recordo apenas a sua voz a dizer “Felicitas Júlia”
E volto a correr para casa.
Pode ser que a Rosa me dê bolachas Marselhesa e um copo de água chalada.
Acho que só mesmo com muita água chalada é que consigo engolir o “D. Jayme”.
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
JÁ VOLTEI ao colégio.
A minha mãe obrigou-me a vestir todos os casacos que encontrou no roupeiro, e não descansou enquanto não me enfiou pela cabeça abaixo um boné de fazenda aos quadrados castanhos e pretos.
Fico horrível de boné.
Mas a minha mãe diz que aquele é a última moda em bonés, que o meu pai tem um igualzinho, comprado no Old England.
A minha mãe vai à abertura da estação do Old England, na Rua Augusta, como outras pessoas vão à abertura da temporada no São Carlos: enfia um vestido verde que só usa em ocasiões especiais, mitenes, e um chapelinho em cima dos bandós.
A Rosa arranja a mesa da casa de jantar, com pratinhos de bolachas Marselhesa e um bule de chá de tília, para ela se sentir mais reconfortada no regresso — não esquecendo a garrafinha de Anisette, porque não há nada como um cálice de licor para uma pessoa ter alma nova.
Então, quando regressa das compras, senta-se à mesa, com ar de imensa felicidade, e murmura, como se recitasse:
- “Toda a elegância se curva diante do rei da elegância”.
(Acho que é assim que vem nos anúncios dos jornais)
E depois de uns minutos de silêncio, acrescenta:
- A loja merece bem o reclame.
E ataca as bolachinhas. E o licor.
Mas isto não quer dizer que o meu boné não seja horrível.
Então lá fui até ao colégio, subi a Rua das Pedras Negras, sempre com esta chuva miudinha que não há meio de parar.
Lá se passou o tempo, pelo meio das regras-de-3, juros e quebrados, e as declinações do latim, e o “D. Jayme” que é preciso saber de cor e nunca mais me entra na cabeça.
Com o meu antigo professor, tudo era diferente.
Lembro-me que um dia saímos da escola com ele, subimos até à Travessa do Almada e depois ele apontou para uma parede e disse:
- Quem é capaz de ler o que aqui está?
Ficámos a olhar para ele, sem entender, era uma parede como outra qualquer, com umas placas muito velhas lá pelo meio.
Ele fez-nos olhar muito bem para elas e disse que eram lápides, e o que de mais antigo restava em Lisboa do tempo dos romanos.
Depois leu o que lá estava escrito em latim.
Já não me lembro de tudo, claro. Mas lembro-me de o ouvir dizer “Felicitas Júlia”, e de ele nos explicar que era aquele o nome da cidade de Lisboa no tempo de Júlio César.
De cada vez que passo por ali, lembro-me sempre do meu professor.
Chamava-se Manuel Buíça.
Há dois anos, naquele dia em que eu vinha da rua Augusta com a minha avó, ele pegou numa carabina e matou o rei. E logo de seguida alguém o matou a ele.
Mas hoje não quero pensar nisso.
Hoje recordo apenas a sua voz a dizer “Felicitas Júlia”
E volto a correr para casa.
Pode ser que a Rosa me dê bolachas Marselhesa e um copo de água chalada.
Acho que só mesmo com muita água chalada é que consigo engolir o “D. Jayme”.
«JN» de 13 Fev 10
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