Por Catarina Fonseca
HÁ DIAS ENCONTREI um caderno do tempo em que era artista.
Até aos 4 anos a coisa corria normalmente: havia uma família de aranhiços que era suposto ser a minha, evoluindo depois para umas borboletas, umas casas, umas noivas, uns príncipes e princesas em variadas fazes da sua existência.
Aos 4 anos, tudo acaba: há páginas e páginas de monstros com couves-flores espetadas e uns gajos às manchas com chapéus esquisitos e penas nos bonés.
Segundo me explicaram depois, eram chaimites, cravos e soldados.
O mais estranho é que eu nunca tinha visto uma chaimite, nem um soldado, e cravos só na praça, porque no dia da revolução tinha ficado em casa da minha avó, dentro do armário, a mascarar-me com estolas, diamantes falsos e luvas até ao cotovelo, tudo do tempo em que a família era burguesa e ainda não estava desperta para os amanhãs que cantam.
Uma infância na revolução podia ser divertida, mas na altura eu não sabia. Só sabia que a minha amiga Teresa tinha uma Barbie com fatinhos de noiva, de hospedeira e de dona de casa, e sapatinhos que passávamos a vida a perder e encontrar nos lugares mais estranhos.
Eu tinha a Olga, que não era noiva, nem hospedeira, e muito menos dona de casa, valha-nos São Lenine : era do meu tamanho e loira-nazi, embora tivesse vindo da URSS trancada no porão a deitar hálitos de tundra pelas narinas, e não se podia vesti-la e despi-la porque ela calçava para aí o 43, e quando eu acordava de noite conseguia ouvi-la a dar ordens à KGB no escuro.
Noite sim noite sim havia comício.
Era o equivalente a uma overdose de Festa do Avante arraçada de feira popular, mas não tinha carrosséis de gonzos mal oleados nem teias de aranha sobre esqueletos de plástico verde incandescente nem o Manolito a arriscar a vida no poço da morte na mota a fazer tracatracatraca cada vez mais depressa à volta do poço e à volta da morte, mas tinha uns gajos a gritar coisas incompreensíveis e a esticar o punho.
Um tipo barbudo apareceu-me certa vez e rosnou, visivelmente preocupado:
“Então, camarada, ainda de chucha?!”
De vez em quando também havia catecismo para nós, os pequeninos. Lembro-me de uma peça de teatro com uns pintainhos amorosos, em que vinha um pintainho amoroso e dizia para outro pintaínho amoroso:
“Olá, vens da clandestinidade?”
Para grande desgosto da família, nem eu nem o meu irmão parecíamos devidamente revolucionários. Ainda se falou em irmos para os Pioneiros. Perguntei de que cor era o lenço. Olharam para mim como se eu tivesse perguntado de que cor era o cavalo branco de D. José, e algo me disse que a resposta não ia ser: “cor de rosa”.
O meu pai suspirou, e pôs-me no ballet.
Foi o fim da minha carreira na revolução.
Mas não se perdeu tudo: pelo menos, havia fotos do Bolshoi no meu quarto. Não era o busto do Lenine, mas sempre era um bocado da mãe-Rússia.
HÁ DIAS ENCONTREI um caderno do tempo em que era artista.
Até aos 4 anos a coisa corria normalmente: havia uma família de aranhiços que era suposto ser a minha, evoluindo depois para umas borboletas, umas casas, umas noivas, uns príncipes e princesas em variadas fazes da sua existência.
Aos 4 anos, tudo acaba: há páginas e páginas de monstros com couves-flores espetadas e uns gajos às manchas com chapéus esquisitos e penas nos bonés.
Segundo me explicaram depois, eram chaimites, cravos e soldados.
O mais estranho é que eu nunca tinha visto uma chaimite, nem um soldado, e cravos só na praça, porque no dia da revolução tinha ficado em casa da minha avó, dentro do armário, a mascarar-me com estolas, diamantes falsos e luvas até ao cotovelo, tudo do tempo em que a família era burguesa e ainda não estava desperta para os amanhãs que cantam.
Uma infância na revolução podia ser divertida, mas na altura eu não sabia. Só sabia que a minha amiga Teresa tinha uma Barbie com fatinhos de noiva, de hospedeira e de dona de casa, e sapatinhos que passávamos a vida a perder e encontrar nos lugares mais estranhos.
Eu tinha a Olga, que não era noiva, nem hospedeira, e muito menos dona de casa, valha-nos São Lenine : era do meu tamanho e loira-nazi, embora tivesse vindo da URSS trancada no porão a deitar hálitos de tundra pelas narinas, e não se podia vesti-la e despi-la porque ela calçava para aí o 43, e quando eu acordava de noite conseguia ouvi-la a dar ordens à KGB no escuro.
Noite sim noite sim havia comício.
Era o equivalente a uma overdose de Festa do Avante arraçada de feira popular, mas não tinha carrosséis de gonzos mal oleados nem teias de aranha sobre esqueletos de plástico verde incandescente nem o Manolito a arriscar a vida no poço da morte na mota a fazer tracatracatraca cada vez mais depressa à volta do poço e à volta da morte, mas tinha uns gajos a gritar coisas incompreensíveis e a esticar o punho.
Um tipo barbudo apareceu-me certa vez e rosnou, visivelmente preocupado:
“Então, camarada, ainda de chucha?!”
De vez em quando também havia catecismo para nós, os pequeninos. Lembro-me de uma peça de teatro com uns pintainhos amorosos, em que vinha um pintainho amoroso e dizia para outro pintaínho amoroso:
“Olá, vens da clandestinidade?”
Para grande desgosto da família, nem eu nem o meu irmão parecíamos devidamente revolucionários. Ainda se falou em irmos para os Pioneiros. Perguntei de que cor era o lenço. Olharam para mim como se eu tivesse perguntado de que cor era o cavalo branco de D. José, e algo me disse que a resposta não ia ser: “cor de rosa”.
O meu pai suspirou, e pôs-me no ballet.
Foi o fim da minha carreira na revolução.
Mas não se perdeu tudo: pelo menos, havia fotos do Bolshoi no meu quarto. Não era o busto do Lenine, mas sempre era um bocado da mãe-Rússia.
(Activa, Abril de 2009)
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