quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Dia dos Mortos

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Por Catarina Fonseca

DIA 2 DE NOVEMBRO comemoramos os nossos Fiéis Defuntos. Não é lindo, o nome? Mas quem é que é fiel? Eles a nós ou nós a eles?

Adoro aviões. Quando morrer quero encarnar num Spitfire Qualquer Coisa (o meu amor pelos aviões não implica que seja capaz lhes decorar os nomes técnicos, deve ser uma deficiência genética feminina). Nunca fui tão feliz como na Base Aérea de Sintra. Não sei se já lá foram: inclui um museu do ar com aviões de todos os feitios e épocas.
Enquanto a Merche posava, eu pulava entre os aviões afagando-lhes o focinho como quem faz a ronda aos estábulos. Os oficiais respondiam-me às perguntas mais surrealistas com paciência de santo: isto trabalha a quê? Os aviões também têm cavalos? Entra-se por que porta? Se me apetecer fazer xixi, é onde? Se me ejectar, isto ejecta-me em bloco ou por partes? Quais partes é que se me ejectariam primeiro?
Problema: os aviões despertam as minhas fobias mais profundas. Amo-os, sim: mas em terra. Haviam de ver as figuras que faço lá em cima. Assim que entro num pisco da Portugália, transformo-me numa torneira humana. Lamento nunca ter aprendido a rezar. Prometo aprender a rezar imediatamente assim que tocar no solo. Peço retroactivos divinos. Até agora deve ter funcionado, embora eu nunca tenha cumprido a promessa.
Fico a pensar que, no nosso mundo, os aviões são aquilo que mais nos faz pensar na morte.Temos uma péssima relação com a morte. Não pensamos nela. Não levamos as crianças aos cemitérios. Enterramos os mortos dentro de nós e não falamos deles. Não falamos com eles, tal como também não falamos com as plantas, nem com as casas. Nem com as crianças. Nem connosco próprios… Nunca lhes dizemos como nos fazem falta. Nunca lhes dizemos que os amamos, tal como não dizemos aos vivos.
Sempre ouvi a minha avó dizer que com os mortos não se brinca. Curiosamente, era com o que eu brincava, na casa dela. Quase não havia brinquedos. Havia o Joãozinho, um boneco que já tinha sido da minha mãe, também ele quase morto. E havia fotografias. De mortos. Imensas fotografias, de imensa gente, imensamente bem vestida, imensamente morta. Eu adorava, ainda mais que aviões. Tirava-as da caixa, espalhava-as na enorme mesa. Geralmente, eram de casamentos ou baptizados, o que explicava que estivessem todos tão bem vestidos. Eu conhecia-os a todos, aos mortos. A Gracinha, que fugiu com o noivo e deixou o ferro ligado. A D. Edite, a do chapéu que parecia um dinossauro aterrado no Empire State a tentar comer o chapéu da morta do lado, a prima Joaninha, que parecia um ninho de plantas carnívoras em fúria, no casamento da Luisinha que casou porque a mãe mandou (eu não me importava de casar com quem quer que fosse, só para usar o vestido que ela usava) e onde também estava o Dr. Sousa, que dava pelo umbigo da mulher que parece que lhe batia e tinha bigode e luvas.
Eu brincava com os mortos como em casa brincava com os cromos das ‘Maravilhas da Natureza’. Mas preferia os mortos. Tinham fatos mais giros e costumes mais exóticos.
Hoje não sei que é feito dessas fotografias. Há muito tempo que não brinco com os mortos, e tenho saudades deles. Às vezes vejo a minha sobrinha mais nova embrenhada nos álbuns da minha mãe, mas a ela só lhe interessam os vivos com menos de 4 anos. Mas já percebi que, se achamos que não cumprimos o nosso dever com os mortos, o melhor remédio é compensar com os vivos. Coitada da minha mãe, que vai ter de comer o jantar que lhe fizer…

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