sábado, 6 de fevereiro de 2010

QUANDO MATARAM O REI

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A GRIPE NÃO HÁ MEIO de passar, já não suporto a canja, já não suporto estar deitado — mesmo que o meu pai me deixe ler o Texas Jack, coisa que ele só admite quando me vê doente.
Confesso que me dá um certo ânimo seguir aquelas aventuras no terrível Desfiladeiro dos Mochos, onde Texas Jack está sempre em risco de ser vítima dos sinistros bandidos que atacavam as mala-postas — mas não chega para baixar a febre.

Cá em casa o ambiente não é dos melhores: a minha avó foi à Sé assistir às exéquias por alma de D. Carlos e D. Luís Filipe, e o meu pai ainda não se recompôs do choque.
No ano passado ela tinha feito a mesma coisa mas, depois de uma conversa no escritório, tinha-lhe prometido não voltar a fazê-lo.
Por isso o meu pai nem queria acreditar quando a viu chegar a casa, partilhando a tipóia da vizinha de baixo — que, tal como eu previa, ainda não tirou as tarjetas negras das molduras dos dois mortos. Só não me importei de ter perdido a aposta com a minha mãe porque, mesmo que a tivesse ganho, não teria podido assistir ao salto mortal no Coliseu por causa da gripe.
Mas o meu pai diz que saltos mortais é o que não vai faltar nos próximos tempos. Às vezes o meu pai tem uma maneira estranha de falar. Deve ser de ler muito.

A verdade é que, mesmo não sendo talassa como a vizinha de baixo, acho que ainda não me recompus daquele dia de Fevereiro em que mataram o rei, fez esta semana dois anos.
A minha avó tinha decidido ir comprar-me um fato na Casa Africana, para a festa de casamento da filha de uma amiga.

Lembro-me de ter barafustado, detestava ir com a minha avó à Baixa, mas não tive outro remédio. Quando eu às vezes digo “eu não quero”, logo toda gente grita:”o menino não tem quereres”.

O meu pai ainda hoje está convencido de que a minha avó só quis ir à Baixa naquele dia porque sabia que os reis iam chegar ao Terreiro do Paço, vindos de Vila Viçosa, e aproveitava para assistir à chegada e ao desfile das carruagens até às Necessidades.
Ela nega, e diz que tudo não passou de um acaso do destino.

Fosse como fosse, tínhamos já descido a Rua Augusta quando rebentou a confusão.
Só me lembro de ouvir tiros, fuzilaria, de ver gente a correr de um lado para o outro, e gritos, muitos gritos, “mataram o rei!”, e ninguém se entendia, e depois alguém disse que o príncipe herdeiro também tinha sido morto, e que o outro ficara ferido, e havia sangue por toda a parte, e lembro-me de ver ao longe um ramo de flores nas mãos da rainha, com que ela batia aos que atacavam a carruagem, e a minha avó puxava-me pelo braço, empurrava-me —e ainda estou para saber como chegámos a casa, com ela sempre a gritar “é o fim do mundo, é o fim do mundo!”
No meio da confusão, perdeu-se o meu fato.
Mas também não houve casamento, que o tempo não vai para festas.

«JN» de 6 Fev 10

2 comentários:

  1. Olá, antes de mais nada, parabéns pelo blog!
    E por acha-lo de muito bom gosto é que o/a convido a vir conhecer a proposta do meu Blog para você.

    Aguado sua visita!

    Forte abraço!

    Karina

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  2. Já ensaiei tanta coisa neste rectângulo da caixa de comentários... mas acabo por apagar. Afinal, dizer o quê?

    Obrigada por estes pedaços de serenidade que me vai dando.

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