sábado, 1 de maio de 2010

EM ESTADO DE CHOQUE…

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ESTOU em estado de choque.
O meu pai chegou hoje à tarde do Porto, onde foi ao congresso do Partido Republicano.
Ao jantar, pelo meio dos pastéis de bacalhau, começou a contar o que se tinha passado:

- Os preparativos para a revolução já estão em marcha! Isto agora vai! Mas temos de ser cuidadosos se não queremos que…

A voz da minha avó:

- Ó Rosa, você acha que isto é uma travessa que se apresente ? Ora vá arranjar tudo como deve ser!

A minha mãe olhou para a minha avó, o meu pai suspirou e continuou:

- …se não queremos novo falhanço como no dia 1 de Abril. Falou-se sobre as investidas policiais contra os anarquistas e…

A minha avó:

- Ó Rosa, o jantar é para hoje ou para amanhã?

E a Rosa, afogueada, a voltar com a travessa, e o meu pai:

- …e contra a Carbonária…

E a Rosa:

- Ai minha Nossa Senhora, por isso é que ele não me apareceu hoje… Se calhar já está na choça!

E a largar a travessa no meio da mesa.
A Rosa anda muito transtornada desde que descobriu que o Alfredo é da Carbonária.
Ela já andava desconfiada de que ele estava metido nalguma, sempre tão bem informado, sempre com tanta gente à volta dele, “ quando saímos ao domingo, aquilo são primos que nunca mais acabam!, olá primo!, como vai o primo!”
Até ao dia em que o galego da esquina lhe contou que é assim que os membros da Carbonária se tratam uns aos outros.
O meu pai respirou fundo e continuou:

- E é preciso também pensar que temos de ter apoio internacional! Por isso o congresso elegeu uma comissão…

E a minha avó:

- Ó Rosa, então larga-se assim a travessa em cima da mesa?

A Rosa lá veio da cozinha, lavada em lágrimas, o meu pai voltou a respirar fundo e continuou:

- Uma comissão composta pelo Alves da Veiga, pelo Magalhães de Lima e pelo José Relvas…
- Esse fazia bem melhor se ficasse a tratar das vinhas lá em Alpiarça…- resmungou a minha avó.
- …para ir pela Europa pedir apoio para a nossa causa.

O meu pai parou, finalmente.
Por momentos só se ouvia o bater dos talheres nos pratos e a Rosa a fungar.

- A monarquia está a morrer — murmurou o meu pai, fazendo uma festa na mão da minha mãe – Esse aí já vai viver num tempo diferente.

Foi então que eu perguntei:

- Esse… quem?

De repente todos olharam para mim, como se eu tivesse dito alguma inconveniência.
A Rosa correu para a cozinha, (“ai valha-me Deus!”), a minha avó levantou-se e foi para o quarto (“está na hora da novena a Sto. Expedito”), o meu pai descobriu que estava atrasado para uma reunião, e a minha mãe decidiu ir dar uma ajuda a lavar a loiça.
Já quase a sair da sala de jantar voltou-se para mim e disse:

- Vais ter um irmão.

Assim.
Como se me dissesse “os pastéis estavam salgados”, ou “lava os dentes antes de te deitares”
E aqui estou eu, sentado à mesa do jantar, sem me conseguir mexer, ainda sem perceber o que me aconteceu.
A monarquia a morrer, e um irmão a nascer — é muito para quem tem só 14 anos.

«JN de 1 Mai 10

1 comentário:

  1. Realmente, estas coisas não se dizem assim a um pequeno que ainda ontem largou as fraldas.

    :)

    Delicioso.

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