sábado, 26 de março de 2011

A CHEGADA DA PRIMAVERA

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Por Alice Vieira

TENHO a casa cheia de lírios.

Acontece que os lírios e eu nunca fomos amigos íntimos.

Para mim, lírios eram apenas aquela flor que costumava entrar sempre nas histórias do Zé Gomes Ferreira, à mesa do Monte Carlo (que então nem sonhava que um dia viria a chamar-se Zara) .

Na sua juventude, o Zé Gomes Ferreira tinha publicado uma colectânea de bucólicos poemas, a que chamara “Lírios do Monte”. Anos mais tarde, num passeio ao campo com um amigo, umas flores chamaram-lhe a atenção: "que bonitas! Que flores serão aquelas?” E o amigo respondeu: "então, são os lírios do monte de que tu falaste tanto no teu livro…”

O Zé Gomes contava isto muitas vezes, e ria muito, e nós ríamos com ele, e ele dizia-me, a mim, jovem a tentar entrar naquele mundo privilegiado, "nunca escrevas sobre aquilo que não conheces! Lembra-te sempre da vergonha dos meus lírios…”
Foi lição que nunca esqueci.

Mas voltando aos lírios.

Sempre me pareceram flores tristes, daquelas que se mandam para aos funerais, tombando ao peso das faixas de “saudade eterna”.

Por isso quando há dias cheguei a casa e encontrei à minha porta um ramo gigantesco de lírios – os meus vizinhos são gente honesta, nunca me roubam as flores que tantas vezes se estendem pelo patamar à minha espera…- até me senti mal.

Mas as palavras do amigo que as mandara reconciliou-me com elas. Garantia ele — que sabe tudo sobre flores, e tem o dom de adivinhar quando eu preciso delas mais que de remédios - que os lírios são as flores da primavera.

E rematava:

“És como o Zé Gomes. Não percebes nada de lírios”.

E ali fiquei, parada no patamar, os lírios aos meus pés, chaves na mão e a tentar atinar com a fechadura, e a rir como há muito tempo não ria – e o meu riso a misturar-se com o riso do Zé Gomes, de repente tão vivo, e com o riso do Carlos, e com o riso do Mário, e com o riso do Abelaira, e com o riso de todos nós à mesa do Monte Carlo.
Todos, de repente, tão vivos.

E foi assim que a primavera entrou, finalmente, em minha casa.

«JN» de 25 Mar 11

sexta-feira, 11 de março de 2011

UMA QUESTÃO DE PORMENOR

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Por Alice Vieira

TODOS SABEMOS como as vozes ficam distorcidas através de altifalantes.
Mas que as palavras se pudessem transformar noutras – isso nunca me tinha acontecido.
Estava eu na sala de espera de um hospital, aguardando que, do altifalante, uma voz dissesse o meu nome.
Li o jornal, fiz as palavras cruzadas, tirei da mala uma edição de bolso de um livro do Machado de Assis, ao mesmo tempo que ia ouvindo os nomes que desfilavam.
Até que a espera me pareceu longa demais. Tenho frequentado com regularidade aquele hospital, e nunca me acontecera esperar tanto.
Cheia de sorrisos e de “se faz favor” e de ”desculpe” — lá fui ao balcão das informações saber o que se passava.
- Já foi chamada há mais de meia hora! – gritam-me – Estão para ali na conversa, nem ouvem, e depois queixam-se!
Eu não tinha estado na conversa, e tenho bom ouvido.
Protestei eu, protestou ela, voltei a protestar eu – até que a convenço a ir lá dentro informar-se melhor.
Não demorou nem cinco minutos.
Ar triunfante.
- Claro que a chamaram! Maria de Jesus Pereira! Chamaram-na até mais do que uma vez!
Explico-lhe, com a calma possível, que eu não me chamo Maria, “Jesus” é o meu segundo nome, e “Pereira” é um dos muitos apelidos com que carrego, mas nem o último, nem sequer o penúltimo. Adianto-lhe que estou habituada, em hospitais, a que me chamem Alice de Jesus Fonseca (os dois primeiros nomes e o último, como é normal nestas circunstâncias) mas nunca, até então, Maria de Jesus Pereira.
Olha para mim e encolhe os ombros:
- Se a gente se preocupasse com pormenores desses…
E manda-me entrar.
A minha neta mais nova, ainda sob os efeitos do Jardim-escola, quando ouve alguém perguntar “quem quer….” - levanta logo o braço, mesmo antes de saber do que se trata.
Acho que lhe vou seguir o exemplo: assim que o altifalante chamar alguém, apresento-me logo.
Se não for eu, paciência. Quem é que se preocupa com pormenores desses.
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«JN» de 11 Mar 11

sexta-feira, 4 de março de 2011

A LEI DE QUEM?

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Por Alice Vieira

OLHOU PARA O ÉCRAN do telemóvel e voltou a não atender. Ainda estava aborrecida. Farta daquele tom de superioridade com que ele lhe falara. Está bem, não era de grandes leituras, mas não era obrigada a conhecer toda a gente que ele conhecia, ou era?
Fez um esforço para recordar o nome que ele tinha dito.
Qualquer coisa que soava a “Mârfi” mas que se calhar até nem se devia escrever assim, era bem capaz de levar “ph” pelo meio, ou “y” no fim, estrangeirices.
Ele fizera questão de a acompanhar à entrevista, mas já tinham saído atrasados, e depois o trânsito, e o estacionamento impossível, quando entraram onde é que já iam as três horas. A rapariga da recepção suspirou fundo, olhou para o relógio, e disse-lhe que esperasse, que ia ver se conseguia que ela entrasse no fim.
Ela verificou mais uma vez a papelada e descobriu que lhe faltava um dossier, o que atestava o bom trabalho feito na empresa anterior, donde saíra só porque a crise obrigara a uma drástica redução de pessoal.
Foi então que ele começou com aquele disparate todo, que não valia a pena sequer ela esperar para ser recebida, estava na cara que não ia conseguir nada, o atraso de quase uma hora, o dossier que faltava, e o ar esbaforido dela, caramba!, quem vem a uma entrevista de emprego tem de se cuidar um pouco - e ela a dizer que eram coisas que aconteciam, e que até se tinha cuidado mas a chuva e o vento e a corrida para chegarem ali é que a tinham posto naquele estado, mas também não era nada demais, nem aquilo era um concurso de beleza.
“Não vai dar nada”, repetia ele, “é a lei de Mârfi…
“De quem?”
Ele olhou-a, espantado:
“De Mârfi... Não me digas que não conheces a lei de Mârfi?!”
“Porquê? Devia?”
“A Lei de Mârfi!”, repetia ele, “ se uma coisa puder correr mal, corre mal de certeza! Se houver três maneiras de um coisa correr mal, ainda há uma quarta que corre pior! Quando uma coisa começa mal, só pode piorar!”
Parou para tomar fôlego:
“Nunca ouviste?”
“Já. É aquele provérbio que a minha avó está sempre a repetir: o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”
E ele a barafustar, que ela era a ignorância em estado puro, qual provérbio, qual avó, aquilo era a lei de Mârfi, como é que ela podia ter chegado àquela idade sem saber a lei de Mârfi!, e se as coisas tinham começado mal não valia a pena esperar porque os resultados só podiam ser piores, o melhor era irem embora.
Ela insistiu, ele que fosse, que ela ficava. Ele foi. Ela ficou.
Em casa, cansada de todas as horas em que olhara para a menina da recepção, vendo a porta do gabinete abrir e fechar, pessoas a entrarem e a saírem, e ela na cadeira, à espera — não lhe apeteceu atender as chamadas dele. Se calhar até era capaz de estar com esse tal Mârfi, a rirem ambos à sua custa.
Depois, lá cedeu.
“Só agora?”
“Que é que queres, entraram mais de 20 antes de mim. Mas depois, olha, nem cinco minutos lá estive. Foi entrar e sair.”
“Eu não disse? Começou tudo mal… Mais valia teres vindo comigo!”
Despachou-a rapidamente, prometeu-lhe um café para o dia seguinte e desligou.
E ela ficou a olhar para o telemóvel, com pena de não ter tido tempo de lhe dizer que começava a trabalhar no princípio da semana.
Com pena de nem lhe ter pedido que agradecesse por ela a esse tal Mârfi, fosse ele quem fosse, com “ph” pelo meio ou “y” no fim, que de certeza tinha metido uma cunha - e das fortes.
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«ACTIVA» de Março 2011

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UMA QUESTÃO DE COIMAS

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Por Alice Vieira

O MUNDO está louco. (Isto por acaso soava melhor se fosse “tá”, mas o acordo ortográfico, que transformou todos os “espectadores” em “espetadores”, ainda não chegou a tanto).

Claro que há as grandes, as enormes, as desvairadas loucuras, que implicam sangue e mortos e massacres, com as pessoas a tentarem sobreviver, sabe-se lá como, e a tentarem fugir, sabe-se lá para onde.

Mas depois há aquelas loucuras pequeninas, quase nem se dá por elas, começam devagarinho, uma pequena notícia num dia e no outro já se esqueceu, que o pessoal tem mais que fazer.

Então parece que pelos Açores há quem proponha castigar os pais que não acompanhem os filhos nos estudos.

Mas castigar mesmo.

Com multas e perdas de direitos sociais.

“Coimas”, para parecer ainda pior. (Quando uma multa passa a coima, estamos feitos.)

Imaginem lá no Pico, nas Flores, na Graciosa, seja onde for, um desgraçado a chegar a casa derreado do trabalho, e ainda ter de dizer «ó Zé, vai lá buscar Os Lusíadas para a gente dividir as orações, senão o professor queixa-se, o governo sabe, e lá se vai o abono!»

No nosso país nada se constrói sem ameaças ou mão pesada.

Alguma coisa não corre bem? Coima para cima dela!

Não há sequer a preocupação de, como me disse um dia um extraordinário polícia que me desculpou uma infracção (levezinha…), “fazer pedagogia”.

Não seria preferível, nos Açores (ou em qualquer outro sítio…) ,explicar aos pais que têm de saber se os seus filhos vão ou não vão à escola, têm ou não têm aproveitamento, essas coisas?

Fazer pedagogia?

Não.

À partida, é logo a ameaça, é logo o chicote.

A gente manda com a coima (hoje estou apaixonada por esta palavra…) e depois logo se vê.

Se, quando os meus filhos andavam na escola, esta lei estivesse em vigor, as finanças tinham-se endireitado num instante: nunca me lembro de os ter ajudado nos trabalhos de casa, nem de alguma vez lhes vistoriar os cadernos.

(O que me vale é viver em Lisboa, senão ainda esta tardia confissão me levava a ser condenada, e a pagar retroactivos…)
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«JN» de 25 Fev 11

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

AS VELHINHAS INGLESAS

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Por Alice Vieira

DEPOIS da família real e dos polícias, as velhinhas são uma instituição inglesa.
Nenhum país tem velhinhas como as inglesas.
As francesas são terríveis, espiando-nos debaixo dos seus chapelinhos cinzentos.
As nossas enchem autocarros e urgências de hospitais só a falar de doenças, ou deixam-se enganar por qualquer caramelo que lhes bata à porta a prometer fortunas se elas lhes passarem para as mãos as economias guardadas no colchão.
As inglesas, não.
Agatha Christie olhou-se ao espelho e depois olhou à sua volta, e percebeu logo que o poder estava nelas.
Miss Marple, entre duas carreiras de meia e liga, ou entre duas chávenas de Earl Gray, sorri para nós, “oh dear, oh dear!”, e diz-nos, na sua voz mansa, quem matou o diplomata, ou o vizinho de cima, ou a estrela de cinema. E descobrimos que estava tudo diante dos nossos olhos, ela nem sequer faz caixinha, como o antipático do Poirot, que descobre tudo só porque tem elementos que nós não temos…Homens… (E belgas…)
Desde então, as velhinhas inglesas têm sido tema de livros, filmes, séries, etc. Quem não se lembra da extraordinária Mrs. Wilberforce, de “O Quinteto era de Cordas”, que, entre velhas amigas, scones, e Mozart, deita por terra o projecto de cinco assassinos encartados.
Um encanto, as velhinhas.
Só que, até mesmo em Inglaterra, a tradição já não vai sendo exactamente o que era...
E quando aqueles seis gatunos de meia tigela, em Northampton, se lembraram de assaltar uma joalharia — uma velhinha apareceu.
Vestida de vermelho – mas velhinha.
Só que, de repente, sem a doçura de Miss Marple ou o sorriso de Mrs. Wilberforce, vá de se meter ao estalo, ao soco e ao murro a todos eles, com uma das mais mortíferas armas que uma velhinha pode usar: a mala de mão.
Os ladrões foram apanhados — e ainda agora devem estar a tentar perceber como é que, de um momento para o outro, as velhinhas inglesas ficaram tão diferentes.
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«JN» de 11 Fev 11

sábado, 5 de fevereiro de 2011

PRINCESAS FELIZES

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Por Alice Vieira

DETESTAVA festas de escola.

As mães a gabarem as gracinhas dos filhos, e os pais com as câmaras de vídeo apontadas ao palco para imortalizarem aquele segundo em que a Martinha, no seu fato de borboleta, se enganou no passo mas disse adeus à tia Henriqueta , ou em que o João Maria se estatelou entre as meninas e desatou num berreiro que parecia não ter fim, mas que engraçadinho que ele ficava quando fazia birras!

Por isso quando Miguel há tempos telefonara a dizer que este ano ia ele com a filha à festa de carnaval da escola, ela até tinha suspirado de alívio.

Claro que devia ter logo desconfiado.

O Miguel nunca na sua vida tomara nota de nada (“não sei como consegues viver sem agenda…”, repetia-lhe ela muitas vezes, nos cinco anos que aguentara casada com ele), não era agora que ia começar.

Ela devia ter-se lembrado de lhe telefonar todos os dias, ou de o bombardear com SMS, ou e-mails — mas a verdade é que descansara, e só o recordou mesmo na véspera.

- Ó diabo! Passou-me completamente! Tenho uma reunião e a esta hora já não dá para desmarcar… Mas para o ano não falto!

Mas ela está-se nas tintas para o ano, o que ela queria era que ele viesse hoje, agora, dentro de uma hora no máximo.

Porque ela também tem uma série de compromissos a que não pode faltar, e agora está ali no café, telemóvel colado à orelha, a filha vestida de Fiona sentada na sua frente, enquanto ela tenta arranjar solução.

São quase horas, a miúda não entende por que ainda ali estão, e murmura

- Quem é que me leva à festa, mãe?

E ela nem lhe responde, marca novamente um número, desliga, volta a marcar,

- Mãe, quem é que me leva…

- Está calada! Não me enerves mais do que eu já estou!

E passa o telemóvel para a outra orelha, mas ninguém atende, parece que toda a gente se esqueceu dos telemóveis em casa, ou estão longe deles, ou simplesmente têm-nos fechados.
Olha para o relógio, tira um cigarro da mala mas logo o volta a enfiar no maço, ali não se pode fumar, e os minutos voam.

- Mãe...

Faz que não a ouve, e volta a clicar nas teclas, e então, de repente, alguém atende, e ela respira fundo, e dá logo a ordem, rápida e seca, nem “olá,” nem “estás onde”, nem “então é assim”, nada.

- Tens de ir com a miúda à festa da escola, vem já ter ao café, depois explico.

Telemóvel desligado, sem dar possibilidade de resposta.

- Era o pai, mãe? — pergunta a miúda, tentando sorrir.

- Mas qual pai… Alguma vez o teu pai tem tempo para nós? Esqueceu-se outra vez de ti, está claro…

- Então quem é que me leva à festa, mãe?

Um fiozinho de voz, quase a tremer.

Ela bebe finalmente a bica, decerto gelada de tanto esperar, e enfia o telemóvel para dentro da mala.

- O Fernando. Está aqui está a chegar.

A filha baixa os olhos.

- O Fernando?...

- Sim, o Fernando. Que é que isso tem?

- Queria o pai…

- Ora…O teu pai ou o Fernando, que diferença faz? O que é preciso é chegares a horas.

A miúda leva as mãos aos olhos.

- Não me faças cenas , que farta de cenas ando eu…

Não faz.

Deixa apenas cair algumas lágrimas no vestido, mas logo as tenta enxugar com a mão.

Ela é uma princesa.

E as princesas, como dizem as histórias que ela ouve na escola, vivem felizes para sempre.
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«ACTIVA» de Fev 2011

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

EM DEFESA DAS AVÓS

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Por Alice Vieira

DEI COMIGO há dias a assistir a um programa, destinado ao público feminino, onde se fazia, mais uma vez, a recorrente afirmação de que não há melhor infantário nem escola infantil do que a casa dos avós.

Confesso que acho estranho que, num tempo em que as avós são cada vez mais novas, e cada vez mais activas, não se ergam vozes feministas a contrariar essa peregrina ideia de avó-fada-do-lar.

Parece que ser mulher, com todos os seus direitos, e no pleno gozo das suas capacidades, tem prazo de validade.

Ficar em casa a tratar de marido e filhos — isso nunca.

Ficar em casa a tratar de marido e netos – parece quase um dever.

Claro que não estou a falar destes terríveis tempos de crise que atravessamos, em que é preciso cortar despesas e a casa da avó é mais barata que um infantário. Mas isso é uma solução de recurso, uma emergência.

Mas quem falava naquele programa, não falava de crise.

Falava do melhor para as crianças. Em todos os tempos.

Como se sabe, nem sequer é o melhor para as crianças que, desde pequeninas, precisam de regras, de aprender a viver com os outros, e de entenderem que não são o centro do mundo.

E se não é o melhor paras as crianças, muito menos o é para as avós.

Que, tal como as mães, trabalham.

Que, tal como as mães, contribuem para fazer progredir este país.

Quando se diz que as mães trabalham fora de casa, toda a gente acha normal e louvável, pois claro!, já lá vai o tempo de ser doméstica!

Mas quando uma avó explica que não pode, por muito que os ame de paixão, ficar com os netos em casa, porque sai às 8 da manhã e só volta às oito da noite, ou porque tem um trabalho para entregar, todos olham para ela como se estivessem diante de uma aberração da natureza.

E era aí que eu gostava de ver as feministas saírem em sua defesa. Mas não saem.

Se calhar porque também elas precisam de alguém a quem deixar as crianças.
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«JN» de 28 Jan 11

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

NA MORTE DE VÍTOR ALVES

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Por Alice Vieira

ESTAVA EM VISEU, quando um SMS me avisou: “Morreu o Vítor Alves”.
Infelizmente era uma notícia daquelas que se esperam — mas que, no fundo, nunca se esperam. Porque todos os nossos amigos são eternos e, quando descobrimos que não são, temos muita dificuldade em acreditar.
Vítor Alves pertencia àquele grupo de homens a quem devemos viver hoje em liberdade e em democracia. Para as gerações mais novas, isto parece um dado tão adquirido que nem lhes passa pela cabeça que alguma vez pudesse ter sido doutra maneira.
Mas foi. Durante muitos anos.
Até que um dia estes homens decidiram arriscar tudo -- vida, liberdade, carreira, saúde, família—em nome de um sonho que, com desvios e loucuras e erros e recuos, ainda é o que hoje nos mantém vivos e actuantes.
Esta é uma dívida que nunca poderemos pagar — nem eles estavam à espera disso.
Mas é muito triste descobrir como as pessoas têm a memória curta.
Foi vergonhosa a maneira como a morte de Vítor Alves foi tratada nos meios de comunicação — já para não falar das muitas horas de um velório quase vazio, quando deveria ter estado SEMPRE, em todas as horas, cheio de gente.
Atirada a notícia para o rodapé dos telejornais — que se enchiam do assassínio de Carlos Castro em Nova Iorque, com direito a um rol de jornalistas em directo, e entrevistas a meio mundo.
Reduzida, num jornal dito de referência, no dia a seguir ao enterro, a uma pequena fotografia em que se via a parte de trás do carro funerário e dois homens a ajudar a colocar o retrato junto do caixão — enquanto páginas inteiras continuavam reservadas ao crime passional de Nova Iorque.
Mas Vítor Alves não se meteu em escândalos, não morreu num hotel de luxo em Nova Iorque, não alimentou crónicas cor-de-rosa, nem sequer pertencia ao jet-set.
Pecados por demais suficientes para o atirar para o limbo dos que não merecem mais que uma breve evocação.
Mas se calhar é aí que ele fica bem — ao lado dos que deram tudo pela pátria, e que a pátria, vergonhosamente, esqueceu.
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«JN» de 14 Jan 11

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O TRICOT

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Por Alice Vieira

ABRIU A JANELA na manhã daquele domingo de Janeiro, suspirou fundo e murmurou:
“Desta vez é que vai ser”
A filha tinha acabado de se arranjar, pronta para o ritual dos almoços de domingo, quando ela lhe descobriu um piercing na língua e uma tatuagem a meio do pescoço.
Engoliu em seco e repetiu:
“Desta vez é que vai ser”
Desde miúda que sente sempre que os primeiros dias de Janeiro são mágicos, porque tudo pode acontecer.
A irmã ria-se dela.
A irmã ria de tudo, parecia viver noutro mundo.
Mesmo as coisas difíceis de suportar (os ralhos do pai, agora a morte da mãe, a deixá-la sozinha; os namorados que apareciam e desapareciam da sua vida) era como se não lhe tocassem: sentava-se no sofá, e tricotava o dia inteiro.
Desde muito nova que era assim.
A mãe ralhava, o pai ralhava, os namorados ralhavam — e ela corria a enfiar-se no sofá a fazer malha.
Ela fora sempre muito diferente da irmã, se gritavam ela gritava também, respondia sempre, não se ficava.
Mas ainda continuava a pensar em Janeiro como num tempo de promessas cumpridas, de novos planos postos em prática.
Por isso logo nos primeiros dias do ano limpava a casa com um vigor renovado, deitava fora baldes e baldes de lixo acumulado, respirava outro ar.
Mas havia rituais a que não podia fugir.
Quando há dois meses a mãe morrera, pensou que o ritual dos almoços de domingo morrera com ela. Os silenciosos almoços de domingo que acabavam, inevitavelmente, com o marido aos berros assim que entravam em casa, e a filha a berrar ainda mais.
Mas logo a irmã avisara que tudo ia ser como dantes, e que ninguém se lembrasse de faltar.
A irmã tinha uma maneira subtil de os fazer rebentar de remorsos, quando murmurava, entre dois sorrisos, “ a mãe não ia gostar nada…”
Então lá iam todos, cada um sonhando estar noutro lugar, com outras pessoas, falando de outras coisas.
À uma hora em ponto a terrina da sopa vinha para a mesa e o silêncio era geral.
“À mesa não se conversa”, tinha sido sempre a filosofia dos pais. Por isso os silenciosos almoços de domingo eram um suplício, que só terminava quando a irmã se levantava da mesa e começava a tricotar — e cada um podia ir à sua vida.
“Que seca…”murmurava a filha, vestida de preto dos pés à cabeça, a viver o seu período gótico.
(No primeiro domingo a seguir ao enterro, a irmã olhara para a miúda e ficara imenso tempo abraçada a ela a fazer-lhe festas no emaranhado do cabelo, pensando que o preto era a expressão do seu desgosto pela morte da avó, e ninguém teve coragem de a desiludir)
“Estou a ficar sem pachorra nenhuma para estas fantochadas”, murmurava o marido, desfazendo finalmente o nó da gravata.
“Tu nunca tiveste pachorra para nada…”, respondia ela.
Era o rastilho. E logo começava a zaragata, ela a dizer coisas que até nem queria, ele a dizer coisas que até nem pensava, a filha a ameaçar tipo bazar dali rapidamente, se aquela cena tipo não acabasse.
Hoje lá vão todos de novo, em romaria.
E ela tem a certeza de que o regresso a casa vai ser complicado, porque o marido ainda não descobriu o piercing nem a tatuagem da miúda e, quando descobrir, a discussão vai ser das valentes. Discussão em casa, evidentemente, porque a irmã não permite coisas dessas lá em casa, “a mãe não ia gostar nada”.
Suspira fundo mais uma vez, antes de fechar a janela.
“Desta vez é que vai ser…”, murmura.
Desta vez é que se vai encher de coragem e pedir à irmã que a ensine a fazer malha.
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«Activa» de Janeiro 2011

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

EUROPEUS, QUE BOM!

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Por Alice Vieira

DESCULPEM LÁ mas eu, se fosse americana, tinha-me sentido muito ofendida por um cão me ter desejado bom ano.
De certeza que toda a gente viu na televisão, passou em todos os canais, com direito a repetições: Barak Obama e a mulher, em duo natalício, mandavam os seus votos de Boas Festas a todo o povo americano. Em nome de ambos,”e também de Malia, e de Sasha” — e vai a Sra. Obama, sorridente, e acrescenta: “e de Bo!” O que o marido reafirma, evidentemente : “e de Bo!”
Bo é o cão da família Obama. Cão de Água português, como toda a gente sabe, o que faz com que tenhamos um infiltrado na Casa Branca.
Mas nem o meu mais acérrimo patriotismo aceita que um cão me deseje Boas Festas. Era só o que mais faltava.
Eu até gosto do casal, palavra!, e só não votei nele porque não pude, mas festejei a vitória cá em casa com um grupo de amigos, champanhe, e tudo aquilo a que a alegria tem direito.
E eu até percebo que os 48% de popularidade não sejam de molde a deixá-lo muito tranquilo, e que portanto há que recorrer a todas as estratégias de marketing para recuperar quem se perdeu.
Mas há limites.
Imaginem que o presidente Cavaco Silva, na mensagem de Ano Novo, exprimia os seus votos em dueto com a mulher, trazendo à liça a família toda, “e também em nome do Bruno e da Patrícia e da Mariana, e do Afonso…”, etc, etc, etc - que o nosso presidente, em número de familiares, leva a palma ao americano.
Já imaginaram? E olhem que eu não incluí cão nem gato nem passarinho nem tartaruga, que não sei se existe lá por casa.
Já pensaram nas reacções? Na risota? Nas anedotas do dia seguinte?
Não há dúvida: ter quase 900 anos de história em cima dos ombros é bem diferente do que ter pouco mais de 200.
Deixem-me ser elitista: ser europeu (está bem, somos velhos; está bem, estamos gastos) ainda é uma coisa muito bonita!
E bom ano para todos!
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«JN» de 31 Dez 10

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUANDO ELES NOS DEIXAM

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Por Alice Vieira

ENTRO na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta.
Desde ontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro portas, fecho portas, olho em volta, como se isso chegasse para o fazer voltar a casa.
Foi a primeira vez que passou a noite fora.
E sem aviso.
Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, de uma palavra de conforto. Para isso é que se inventaram as amigas.
Nada feito.
Riem-se de mim. Deve ser a isto que se chama “solidariedade feminina”.
“Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, mas isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!
“E o meu? Ao fim de um ano, adeuzinho!”
Estremeço.
Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.
Elas voltam a rir.
“Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver, nunca mais te entendes com ele…Vem mudado, com uma linguagem diferente… “
Desligo o telefone.
A minha filha também não me ajuda:
“Ó mãe, não penses mais nisso, procura mas é um novo…
“Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar”
“Isso é o que dizem todos”
Tento ocupar o tempo — mas sem ele é impossível.
Sem ele não consigo ouvir música.
Nem ler um jornal.
Nem partilhar histórias.
De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.
A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.
“Quem te viu e quem te vê… - murmurava ela — “Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida…E agora…”
E agora — oh felicidade! — ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza.
Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que me diz:
“Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, mais um anti-vírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 170 euros, mais IVA.”
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«JN» de 17 Dez 10

domingo, 5 de dezembro de 2010

RECORDANDO CARLOS DE OLIVEIRA

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Por Alice Vieira

QUANDO CHEGA Dezembro, começamos a notar que à mesa familiar falta cada vez mais gente.
“Mesa familiar” é, no fundo, a metáfora que usamos para nesta altura abraçarmos um pouco mais os amigos, e ficarmos felizes só pelo facto de eles estarem ao nosso lado.
Mas ao nosso lado vai havendo cada vez mais lugares vagos.
A minha mesa familiar ainda não se habituou às ausências do João Aguiar, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo, do Raul Solnado, da Mariana Rey Monteiro, todos eles ainda tão dentro de mim.
Mas, de repente, chega-me uma terrível e inesperada saudade de alguém que há muitos anos desapareceu da minha mesa.
Tudo por causa de um programa que a RTP-2 passou, dedicado aos “Grande Livros”.
Naquela noite, o livro era “Uma Abelha na Chuva”, do Carlos de Oliveira.
É um grande romance da nossa literatura, e foi bom recordarmos as imagens do filme do Fernando Lopes, e ouvir falar dele (a Laura Soveral e a sua voz incomparável…)
Mas o que sobretudo me marcou foi o rosto do Carlos de Oliveira — aquele olhar que entrava dentro de nós e nos dizia tudo o que era preciso, aquele sorriso que me recebia sempre, quando eu chegava à sua mesa do “Monte Carlo”.
Ele e o Zé Gomes Ferreira — sempre. Depois às vezes por lá caíam o Abelaira, o Mário Dionísio, tantos outros.
Mas o Carlos e o Zé Gomes eram a minha âncora. E foram a minha verdadeira universidade. Eu, vinte e poucos anos, deslumbrada no convívio diário com gente que nunca pensara vir a conhecer.
E, de repente, quando a revolução de Abril dava os seus primeiros passos, o Carlos de Oliveira morre. De um dia para o outro.
Nunca perdoei ao destino, e acho que aquela geração mais nova que privou com ele nunca mais se recompôs.
Fosse o que fosse que fizéssemos ou escrevêssemos, pensávamos sempre: “o que é o Carlos dirá disto”.
Ele era o rigor, a coerência, a lucidez em estado puro.
Ele era a nossa consciência moral.
Nunca mais tivemos outra.
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«JN» de 3 Dez 10

sábado, 20 de novembro de 2010

DENUNCIANTES

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Por Alice Vieira

OS JORNAIS anunciaram que, a partir de agora, é oficialmente reconhecida a nobre profissão de denunciante.

Já tardava, é um facto. Mas pronto, antes tarde que nunca.

Todos sabemos como a nobre arte da denúncia tem sólidas raízes entre nós.

No tempo do Senhor D. João III (e nos tempos que depois se seguiram…) muitos foram os que acabaram nas fogueiras da inquisição, denunciados por vizinhos, familiares ou amigos, prontos a jurar que os tinham visto, por exemplo, “ a ter comércio com o demónio”, ou a “apartar-se da nossa santa fé católica, passando-se à lei de Moisés, vestindo camisas lavadas aos sábados, e jejuando às 2ª e 5ª, e não comendo carne de porco”.

Sabe-se como a nossa santa fé lhes ficou eternamente grata.

Muito mais tarde, nos saudosos tempos do Estado Novo, a nobre arte da denúncia foi de novo reinstaurada. Uma legião de impolutos cidadãos, amantíssimos esposos e extremosos pais de família, encarregava-se de escrever cartas denunciando vizinhos, colegas de trabalho, familiares, amigos, ou vagamente conhecidos, jurando que os tinham ouvido falar contra a ordem estabelecida, denegrindo a figura do Sr. Presidente do Conselho, ou pondo em causa a nossa patriótica presença em África, ou ouvindo rádios a soldo de potências inimigas estrangeiras, ou acolhendo gente suspeita em suas casas pela calada da noite. Assim o juravam e assinavam, a bem da nação.

Sabe-se como a nação lhes ficou eternamente grata.

Como se vê, está-nos na massa do sangue.

Agora, se alguém suspeitar de corrupção — as autoridades ordenam que se denuncie imediatamente.

Com a net é uma limpeza, pena ela não existir nos tempos do Senhor D.João III ou do Sr. Dr. Oliveira Salazar, bom jeito tinha dado.

Claro que há uma triagem — dizem.

Claro que há uma investigação — dizem.

Claro que os tempos são outros — dizem

Mas os denunciantes, lá no fundo, nunca mudam.
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«JN» de 19 Nov 10

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Convite para lançamento de livro

Por Alice Vieira

18 Nov 10 / 18h30m
El Corte Inglés de Lisboa (piso 7)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

OS MORTOS DE NOVEMBRO

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Por Alice Vieira

OS MORTOS, claro!, os mortos de Novembro! os intermináveis mortos de Novembro — e ela de vermelho.
Podia ter escolhido outra cor, digamos, menos agressiva, menos “espampanante”, diria a mãe...
Adora a palavra “espampanante”, lembra-lhe champanhe a transbordar da flûte.
Meu Deus, os mortos de Novembro, e ela de vermelho e a pensar em champanhe.
Teresa a chamar por ela, a esperar por ela, a mandar-lhe SMS atrás de SMS, “tou cá em baixo”, “desces ou subo?”, “tás muito atrasada?”, e ela de telemóvel na mão sem saber o que responder, porque só tem olhos para o vestido vermelho, logo hoje, por que raio se esqueceu que era novembro, data marcada para pensar nos mortos, única altura em que a irmã se lembrava deles.
Com a morte da mãe (que se fizera enterrar na aldeia natal, a centenas de quilómetros dali) chegara a pensar que tudo isso tinha terminado.
Mas já devia saber que Teresa era igual à mãe.
Vêm-lhe subitamente à cabeça os Dias dos Mortos da sua infância, em que a mãe os levava a todos ao cemitério.
A mãe dizia sempre “Dia dos Fiéis Defuntos”.
Um dia ela perguntou-lhe se havia defuntos infiéis (na escola falavam muito dos “infiéis” com quem D.Afonso Henriques andava sempre à espadeirada), e a mãe deu-lhe um estalo com tanta força que os dedos lhe ficaram marcados na cara durante uma semana. A mãe sempre tivera uma maneira muito própria de responder a perguntas difíceis.
Iam sempre na véspera, porque na véspera é que era feriado e a mãe não trabalhava. Sentava-os em minúsculos banquinhos portáteis, contava-lhes rapidamente a história dos que ali estavam (e que, com o andar dos anos, já todos sabiam de cor) — enquanto tirava do saco um frasco de detergente e se punha a esfregar o mármore das campas, como se não houvesse amanhã.
“O Sr. Salvador está cada vez mais desleixado…” — ouviam-na murmurar.
O Sr. Salvador era o coveiro e quem ali tratava de tudo.
E todos olhavam uns para os outros e riam à socapa, para que a mãe não ouvisse, porque achavam muita graça à ideia de alguém, chamado Salvador, tratar de quem já não tinha salvação possível.
Todos, menos Teresa, evidentemente. Muito direita no banco, e muito séria, Teresa estava ali para sofrer, honestamente, por todos.
Às vezes a mãe até lhe pedia ajuda: “Teresinha, toma o esfregão e limpa aí esse lixo ao pé da “saudade eterna” da placa do tio João Martins”
E a Teresa que, tal como os outros, nem sabia quem tinha sido o tio João Martins, desatava a esfregar, rivalizando com a mãe em suor e dedicação.
Uma vez por ano, na véspera do Dia dos Mortos, Teresa tinha pena dos mortos da família — mesmo que nunca os tivesse visto em vida.
Mesmo que a mãe já não dominasse as suas vidas.
“Amanhã venho buscar-te ao meio-dia”, tinha-lhe dito, num rápido telefonema.
E ela pensara que, num súbito (embora estranho) ataque de saudades, a irmã mais velha quisesse passar o feriado com ela.
Nem se lembrou de perguntar “para quê?”
Ficou contente, até se vestiu de vermelho.
Agora, de repente, tão despropositado.
Faz um esforço para recordar onde estão enterrados os seus mortos, aqueles de que verdadeiramente sente a falta, aqueles cujas campas nunca conheceram as fúrias salvadoras da mãe e da irmã.
E sorri a pensar neles todos, e em como todos eles, à sua maneira, tinham dado sentido à sua vida, e era como se ainda ouvisse as suas palavras, como se ainda sentisse o calor das suas mãos, a alegria das suas gargalhadas.
Novo SMS: “então?”
“Já desço” - responde.
Pega na carteira, fecha a porta, entra no elevador.
Enquanto Teresa estiver a chorar pelos mortos desconhecidos, ela irá em busca dos que lhe pertencem.
Dos que a fizeram feliz.
Dos que merecem o seu vestido vermelho.
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«ACTIVA» de Nov 2010

sábado, 6 de novembro de 2010

A SALA DOS PROFESSORES

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Por Alice Vieira

EU SEI QUE, hoje, ser professor é profissão de risco.
De resto, qualquer profissão, hoje, é de risco — quanto mais não seja o risco de ir para a rua em dois segundos.
Mas aquele letreiro, à entrada da sala dos professores, chamou a minha atenção.
“É expressamente proibido os alunos incomodarem os professores durante os intervalos.”
Se calhar foi aquele “expressamente proibido”, se calhar foi aquele “incomodarem”, não sei, alguma coisa naquela frase me projectou de repente aos meus 20 anos, quando trabalhei com o prof. Calvet de Magalhães — um dos grandes pedagogos que este país conheceu — que nunca fechava a porta do seu gabinete.
A Escola Francisco Arruda, de que era director, foi um modelo único de experimentação de metodologias, de integração na comunidade, de educação pela arte.
A Francisco Arruda tinha laboratórios, oficinas, biblioteca, anfiteatro, ginásio (até um infantário para filhos de professores e funcionários, carinhosamente conhecido por “Chiquinha”)
E, aos sábados, abria as portas de par em par—e enchia-se de miúdos dos bairros da lata que então envolviam a escola, e que sabiam que naquele dia tinham ali à sua disposição gente que lhes contava histórias, ou artesãos que lhes explicavam ao vivo os seus ofícios, ou música, ou ateliers de modelagem, ou xadrez.
Os sábados eram uma festa.
Foi no “Diário de Lisboa” que conheci o prof. Calvet de Magalhães, a organizar “O Natal Visto pelas Crianças” — um concurso destinado a todas as escolas do país, com uma aceitação que se traduzia em caixotes e caixotes de trabalhos que as escolas mandavam. À sua volta reunia um júri de peso nas artes e na literatura: José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues.
Eu estava então a iniciar-me na aventura do jornalismo, dando apoio àquelas pessoas, que para mim, até então, só viviam nos livros…
E um dia, de repente, o Prof. Calvet de Magalhães disse-me: “no sábado, vais ler histórias aos miúdos da minha escola”
Passei aquela semana em pânico, ora escolhia uma história, ora escolhia outra (estava tão longe de um dia vir a escrevê-las!) e, por muitos anos que eu viva, nunca esquecerei aquela sensação de me ver em cima de um palco diante de um salão enorme a rebentar pelas costuras da malta da pesada…
Mas aguentei-me.
E, sábado sim sábado não, lá estava eu na minha nova actividade…
Foi nesses anos que aprendi o que era verdadeiramente ser professor. A dedicação, a disponibilidade permanente, (“a porta do meu gabinete está sempre aberta, porque nunca sabemos quando um miúdo precisa de nós”), o gosto pelo trabalho que se faz, até o sentido de humor: havia uma sineta, à entrada da escola, com a inscrição: “Quando o progresso falhar, lembrem-se de mim”
Lembrei-me de tudo naquele dia, ao ler o aviso na porta da sala dos professores.
E tive muitas saudades do Prof. Calvet de Magalhães.
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«JN» de 6 Nov 10

sábado, 30 de outubro de 2010

SAUDADES DA NÈLITA

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Por Alice Vieira

Por que nos lembramos de umas pessoas e esquecemos outras? O que leva a nossa memória a ser selectiva? Seja o que for, ela terá as suas razões.

AS VELHAS DA CASA sempre lhe tinham tentado ensinar que era na primavera que se faziam as limpezas, mas ela nunca tivera essa obsessão primaveril pelo aspirador, pela esfregona ou pelo pano do pó. E se havia altura em que (vagamente) lhe apetecia dar uma arrumadela na casa, era sempre em Outubro.

Porque, para ela, era então que o ano começava. E que as coisas velhas e sem préstimo se deitavam fora. E se trocava a posição dos móveis. E se mudavam as fotografias das molduras.
Nunca se tinha conseguido libertar daquilo a que o marido chamava “a síndroma do antigamente-a-escola-era-risonha-e-franca”, ou seja, é em outubro que as aulas começam, que se abre uma vida nova, que se escolhem os cadernos, que se forram os livros, que se baixa a bainha das batas.

Tantos anos depois – quando já ninguém sabe como se forra um livro e para que é que isso serve, ou que raio de coisa é uma bata — na sua cabeça tudo continua igual.

Era em Outubro que o ano começava. Ela chegava dos três meses espalhados pela praia, pelo campo, pelas termas, a morrer de saudades das colegas e dos amigos do bairro (nessa altura nem sonhava que iria casar com um deles) apesar de, naqueles meses, terem trocado entre si muitos postais e cartas.

Por isso não pode deixar de sentir um leve aperto no estômago — “como o tempo passa!” - quando, pelo meio da papelada que rasga, lhe caem no colo uma série de postais antigos.

Todos enviados entre Agosto e Setembro de 1956, de Viana do Castelo, pela Nèlita.

Com diversas variantes de “camponesas em trajo de trabalho”, e de “motivos regionais” (o que vinha a dar no mesmo, ou seja, moçoilas vestidas à moda do Minho dos pés à cabeça, à frente de carros de bois e de rebanhos.)

Dá voltas à cabeça — e não consegue lembrar-se de nenhuma Nèlita mas, pelos postais, vê-se que devia ser amiga íntima, possivelmente lá do bairro, porque pergunta pela família inteira ,e sabe o nome de cada uma das velhas, e num deles até lhe dá os parabéns pelo exame de solfejo no Conservatório, ao mesmo tempo que a informa de que “o primo da Zulmira entrou para o Colégio Militar”, enquanto noutro se espanta, “nem acredito que o meu querido partiu duas costelas!”, e noutro ainda lhe dá conta da sua indignação:”imagina que escrevi à Elizabeth Taylor mas não recebi fotografia nenhuma.”

Fica a sorrir, tentando imaginar-se naquele ano de 1956, com 13 anos, a escrever postais à Nèlita, e tem muita pena de a ter esquecido assim, como se ela não tivesse existido.

Ao jantar fala nisso ao marido, “imagina, devemos ter sido tão amigas e nem me lembro dela!”

Ele dá uma gargalhada:

“A Nélita! Como é que tu não te lembras da Nèlita? Andava sempre atrelada à Zulmira e deviam ser as miúdas mais feias lá da nossa rua!”

E depois de uma pausa, acrescentou:

“Feia, mas muito simpática! Nunca me hei-de esquecer que foi a única das tuas amigas que se preocupou comigo naquele verão em que tive um torcicolo que não havia meio de passar! Até me escreveu um postal!”

“Só por causa de um torcicolo?”

Ele voltou a rir:

“É que eu disse-lhe que tinha partido duas costelas… Ela estava de férias no norte, nunca veio a descobrir”.

De súbito, já não tem pena nenhuma de ter riscado a Nèlita da sua memória.

E fica muito contente por a Elizabeth Taylor não lhe ter enviado nenhuma fotografia.
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«ACTIVA» - Outubro de 2010

sábado, 23 de outubro de 2010

DESCOBRI O SIMPLEX

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Por Alice Vieira

TENHO MAIS MEDO de entrar numa repartição de Finanças ou da Segurança Social do que no consultório do dentista.

Por isso, quando entrei na Segurança Social para pedir um documento a provar que não devo nada a ninguém, até tremia.

Tirei a senha e, oh alegria!, era a senha 35 e já iam na 14, não devia demorar muito.

Nem valia a pena sentar-me, fiquei encostada à parede a olhar para os que iam chegando, e tirando senhas, e suspirando.

Quando, hora e meia depois, ainda se continuava na senha 14, comecei a não achar graça.

Reparo então - tenho pouca prática destas coisas - numas senhas com a designação de “prioritárias”. Pergunto quais as prioridades que abrangem - mas ninguém me sabe responder.

De repente, num écran em que passa muita informação a correr, com toda a gente a sorrir muito, a dizerem-nos - a nós, que já ali estamos há horas — como tudo agora é fácil e rápido, descubro que basta uma pessoa ter mais de 65 anos para usufruir dessa benesse.

Tiro outra senha, desta vez a 20, quando já estavam a chamar a 10. Óptimo, agora é que era.

O pior é que se estava na hora do almoço - e, durante mais de uma hora, nenhuma senha mexeu.

Palavra que temi um levantamento popular. Uma senhora começou a fazer um comício às massas, “devíamos era ir com panelas a São Bento!”, mas como a maior parte não estava a perceber o que faziam ali as panelas, ela lá explicou que era uma coisa que tinha acontecido no Chile, mas na sua cabeça as coisas deviam andar um pouco baralhadas porque, dali a momentos, já era a Argentina e as mães da Praça de Maio, e nós que éramos todos uns bananas, que amochávamos tudo. Desiste de esperar e vai embora, ela e mais alguns, e por isso, ao fim de seis horas de ali estar, chamam-me para me informarem que o que eu quero não é com eles.

Deve ser a isto que o nosso primeiro chama o “simplex”.
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«JN» de 22 Out 10

sábado, 9 de outubro de 2010

VIVA (ENFIM!) A REPÚBLICA!!

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA CABEÇA está baralhada e nem sei por onde começar.
A confusão toda começou quando há dias o Alfredo entrou aos berros, “um louco assassinou o Dr. Miguel Bombarda!”
A minha mãe caiu desamparada na chaise-longue da sala, gritando “ai que mal que eu me sinto!”, e o meu pai, sem saber se havia de acudir à Pátria ou à mulher, disse:

- Chamem a parteira! - e desapareceu pelas escadas com o Alfredo, que não parava de perguntar “e agora quem é que distribui as armas ao pessoal?”

Foi então que percebi que a revolução vinha aí, e que desta vez é que era. Segundo ouvi dizer, havia senha para os revoltosos e tudo! “Mandou-me procurar?”, era a pergunta, - a que se devia responder “passe, cidadão!”
Não sei explicar mas, desde esse dia 3, em que o doutor foi assassinado, até ao dia 5, em que o meu pai entrou em casa de madrugada cheio de sangue nas calças - na minha cabeça não há divisões, nem manhãs nem noites, como se tivesse sido tudo um único dia.
O meu pai andava num entra e sai, preocupado com a criança a nascer em casa, e com a revolução a nascer na rua.
E de cada vez que entrava, trazia notícias diferentes.

- A revolução a rebentar, e o rei a jantar com o presidente do Brasil! Disseram-lhe que seria melhor cancelar o jantar — e ele disse que o mais que podia fazer era prescindir da sobremesa para acabar mais cedo!

Às vezes o meu pai vinha eufórico, e falava de nomes como Machado Santos, Afonso Costa, José Relvas, João Chagas, e os olhos dele brilhavam quando contava que os bravos de Infantaria 16 não tardavam a vir por aí abaixo, e que os soldados se tinham deitado vestidos e equipados para estarem prontos a sair quando fosse dado o sinal!
Mas às vezes chegava desanimado, como quando se deixou cair no sofá da sala, murmurando:

- O almirante Cândido dos Reis suicidou-se.

Até a minha mãe se esqueceu das dores.

- Ainda me parece estar a ouvi-lo ontem : ”Se me julgasse incapaz de assumir o comando das forças da marinha e de as conduzir à vitória, dava um tiro na cabeça!” Disseram-lhe que estava tudo perdido e ele não aguentou.

Mas logo o meu pai recuperou forças e voltou a sair, exclamando:

- Mas nada está ainda perdido!

Foi quando apareceu o Alfredo a gritar “Machado Santos está na Rotunda com mais 400 homens, e vão chegar muitos mais! “
Saíram os dois e nunca mais os vimos até à madrugada do dia 5, quando nos entraram pela casa, exaustos, empoeirados, colarinhos abertos, casacos rotos, manchas de sangue nas calças.

- Ganhámos!...

Exactamente no momento em que a parteira saía do quarto da minha mãe e dizia:


- Manuel Alfredo… - murmurou o meu pai. — Nasce no dia em que se anuncia um mundo novo!

O meu filho vai ter…
E a parteira:

- “Menina”, eu disse “menina”…

Resumindo (até porque este caderno está mesmo a acabar e não me apetece muito começar um novo) : já temos República, o rei, as rainhas e o Arreda foram de barco para o exílio em Gibraltar, e vamos escolher um presidente.

- Cá estaremos para ver no que dá…- murmura a minha avó.

É isso: cá estaremos
(Ah, e a minha irmã foi baptizada com o nome de Maria da Anunciação.
Sempre se podem aproveitar os monogramas da roupa).
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«JN» de 9 Out 10

sábado, 2 de outubro de 2010

“CONQUISTEI O EXÉRCITO!”

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Por Alice Vieira

FALTA POUCO para voltar à escola e, para aproveitar os dias de liberdade que me restam, pedi ao meu pai que me levasse ao Coliseu : há lá uma dupla irresistível de cómicos e o cavaleiro australiano Silant faz prodígios com o chicote!

Mas o meu pai disse que não estamos em tempo de palhaçadas.
Depois do jantar a Rosa disse que, se eu quisesse, podia ir com ela e com o Alfredo para a semana ao teatro.

- O Alfredo tem entradas para o Teatro do Príncipe Real! Deu-lhas um marçano amigo dele. Eu conheço-o, chama-se António Silva e é um tipo magrinho e com muita graça! O António entra na peça que se estreeou agora, chamada “O Rei Maldito”. Quer dizer, entra e sai, porque quase nem abre a boca, mas já é o suficiente para ter direito a borlas!

A Rosa contou que o Alfredo nem queria ir porque diz que a vida não vai para teatros, mas ela lá o convenceu. Agora, resta-me convencer a minha mãe.
Mas não são apenas o meu pai e o Alfredo que estão preocupados : toda a gente anda sobressaltada.
As greves não têm fim. Neste momento há greves dos tanoeiros, dos tipógrafos, dos conserveiros, dos garrafeiros, e sobretudo dos corticeiros, que estão a ocupar as estações de caminho de ferro, para impedir o embarque da cortiça.
Ouvem-se os boatos mais desencontrados, e as prisões continuam.
Ontem a D. Etelvina, que agora vem cá quase todas as tardes para acabar o enxoval do meu irmão, até tremia só de pensar nos dois vizinhos que de manhã tinham sido levados pela polícia.

- Imagine a Sra.D. Joaquina - dizia ela para a minha avó — eu a cruzar-me com eles todos os dias, “boa tarde, Sr. João Borges! Boa tarde, Sr. Manuel Ramos!”, e eles , “boa tarde D.Etelvina!”, sempre muito bem educados - e vai-se a ver eram bombistas! A polícia diz que eles tinham em casa centenas de bombas! Já viu se aquilo tudo explodia lá no prédio?!

E a D. Etelvina tremia tanto que até se picou com a agulha.

- Isto anda muito mal — disse a minha mãe — mas o rei continua por aí a passear como se nada fosse…Andou pelo Buçaco a brincar às batalhas…
- Era um centenário importante! — a voz ofendida da minha avó.

A minha mãe riu:

- Coitado, acho que ele não está mesmo a perceber nada do que se passa...Contaram-me que lá no Buçaco, depois das cerimónias, e dos desfiles e dos “vivas” do costume, exclamou: “Conquistei o exército!”

E a minha mãe deu uma gargalhada:

- Agora anda a fazer de cicerone ao Presidente Hermes da Fonseca, que acabou de chegar do Rio de Janeiro… Não me admiro nada de o ouvir dizer um dia destes: “conquistei o Brasil!”

A minha mãe estava mesmo bem disposta. Foi então que me lembrei de lhe perguntar por que é que o meu irmão se vai chamar Manuel Alfredo.
Ela ficou muito séria e foi a minha avó que exclamou:

- Porque o teu pai não tem vergonha na cara e vai dar ao filho o nome dos dois criminosos que mataram D. Carlos e D. Luís Filipe!

A minha mãe encolheu os ombros e ficou a abanar a cabeça, enquanto a minha avó levava a D. Etelvina até ao roupeiro para guardarem mais um lençol!

«JN» de 2 Out 10