Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910"
«JN» de 30 Jan 10
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910"
DESDE O PRINCÍPIO do mês que há temporais no país inteiro.
Aqui por Lisboa nem se sente tanto, mas no Porto o rio subiu que parecia o mar, com os barcos rabelos a chocarem uns nos outros, e o vapor “Cintra” a naufragar na barra.
No Ribatejo também as coisas estiveram muito feias — e há dias até fui com a minha mãe ao Salão Central, ver um documentário sobre “As Últimas Inundações do Tejo em Santarém”.
Não sei se foi por causa disso, ou pela chuva que não pára de cair, fiquei de cama com gripe, e com uma dor de garganta que não passa, por mais zaragatoas que me façam. Odeio aquele sabor do mercurocromo embebido no algodão, e estou sempre com medo de engolir o pincel, mas a minha avó diz que ainda não se inventou outro remédio.
O meu pai diz que, se isto não passar, vai ter de chamar o Dr. António José, que é quem nos trata a todos, ou então leva¬-me ao consultório, no Largo de Camões.
Mas parece que o Dr. António José ultimamente tem andado muito ocupado — e não é a ver doentes…
- Se houver justiça neste mundo e esta corja for ao ar …
(“Então, Fernando!, olha o menino!”, exclama a minha mãe, que não gosta de o ouvir usar esta linguagem)
- …o Dr. António José ainda há-de ser Presidente da República.
- Vá de retro Satanás! — grita logo a minha avó-- Não me diga que ainda quer mais mortos!
- Eu não quero mortos, senhora minha sogra — responde o meu pai -- mas há alturas na vida em que até a violência se explica… Se olharmos para este país tão atrasado, para esta miséria, para a exploração nas fábricas, para as prisões que se enchem de dirigentes políticos (como o Dr. António José…) enquanto os ladrões andam cá fora a roubar e a assaltar casas, se pensarmos nos desgraçados obrigados a emigrar, se olharmos para todo este povo que não sabe ler, que…
- Chega, meu genro! O senhor não está num comício da Av. Rainha D. Amélia! – diz ela e acaba-se o discurso.
O meu pai diz que ainda não perdeu a esperança de a converter aos ideais republicanos, mas que é preciso ir com calma.
A Rosa, que é a nossa criada e tem uma secreta paixão pelo Dr. António José (e que se recusa a acreditar que ele vai casar dentro de dias) diz que o meu pai está cheio de razão, ela bem sabe o que ouve na Praça da Figueira quando lá vai às compras.
- Inda agora me disseram que a Giraldinha voltou a atacar — diz ela.
A minha mãe está sempre a dizer à Rosa que tenha muito cuidado ao abrir a porta, e só deixe entrar quem ela conhece. Ao que diz o “Século”, a Giraldinha faz-se passar por amiga da família, e depois rouba tudo a que pode deitar a mão.
A Rosa tem um particular ódio à Giraldinha porque, para lá de em tempos ter sido criada, também se chama Rosa.
- Há coisas muito injustas… - suspira ela, antes de se enfiar pela cozinha para tratar da minha canja.
Aqui por Lisboa nem se sente tanto, mas no Porto o rio subiu que parecia o mar, com os barcos rabelos a chocarem uns nos outros, e o vapor “Cintra” a naufragar na barra.
No Ribatejo também as coisas estiveram muito feias — e há dias até fui com a minha mãe ao Salão Central, ver um documentário sobre “As Últimas Inundações do Tejo em Santarém”.
Não sei se foi por causa disso, ou pela chuva que não pára de cair, fiquei de cama com gripe, e com uma dor de garganta que não passa, por mais zaragatoas que me façam. Odeio aquele sabor do mercurocromo embebido no algodão, e estou sempre com medo de engolir o pincel, mas a minha avó diz que ainda não se inventou outro remédio.
O meu pai diz que, se isto não passar, vai ter de chamar o Dr. António José, que é quem nos trata a todos, ou então leva¬-me ao consultório, no Largo de Camões.
Mas parece que o Dr. António José ultimamente tem andado muito ocupado — e não é a ver doentes…
- Se houver justiça neste mundo e esta corja for ao ar …
(“Então, Fernando!, olha o menino!”, exclama a minha mãe, que não gosta de o ouvir usar esta linguagem)
- …o Dr. António José ainda há-de ser Presidente da República.
- Vá de retro Satanás! — grita logo a minha avó-- Não me diga que ainda quer mais mortos!
- Eu não quero mortos, senhora minha sogra — responde o meu pai -- mas há alturas na vida em que até a violência se explica… Se olharmos para este país tão atrasado, para esta miséria, para a exploração nas fábricas, para as prisões que se enchem de dirigentes políticos (como o Dr. António José…) enquanto os ladrões andam cá fora a roubar e a assaltar casas, se pensarmos nos desgraçados obrigados a emigrar, se olharmos para todo este povo que não sabe ler, que…
- Chega, meu genro! O senhor não está num comício da Av. Rainha D. Amélia! – diz ela e acaba-se o discurso.
O meu pai diz que ainda não perdeu a esperança de a converter aos ideais republicanos, mas que é preciso ir com calma.
A Rosa, que é a nossa criada e tem uma secreta paixão pelo Dr. António José (e que se recusa a acreditar que ele vai casar dentro de dias) diz que o meu pai está cheio de razão, ela bem sabe o que ouve na Praça da Figueira quando lá vai às compras.
- Inda agora me disseram que a Giraldinha voltou a atacar — diz ela.
A minha mãe está sempre a dizer à Rosa que tenha muito cuidado ao abrir a porta, e só deixe entrar quem ela conhece. Ao que diz o “Século”, a Giraldinha faz-se passar por amiga da família, e depois rouba tudo a que pode deitar a mão.
A Rosa tem um particular ódio à Giraldinha porque, para lá de em tempos ter sido criada, também se chama Rosa.
- Há coisas muito injustas… - suspira ela, antes de se enfiar pela cozinha para tratar da minha canja.
«JN» de 30 Jan 10
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