sábado, 27 de março de 2010

BOMBAS NO TEJO, BISPOS EM LISBOA

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ISTO não anda bem.

A Rosa que, nos intervalos da paixão impossível pelo Dr. António José, namora com o Alfredo, que é marçano e todos os dias carrega com as compras da mercearia até nossa casa, contou que ele lhe disse que tinham sido deitadas ao Tejo uma data de cestos cheios de bombas, daquelas que as pessoas fazem em casa.

- Se calhar alguém os avisou que tinham sido denunciados à polícia e resolveram desfazer-se delas--disse a minha mãe.

- E o Alfredo também disse que há cestos cheios delas enterrados nas hortas…
- Que perigo! – murmurou a minha mãe.
- É por isso que aos domingos nunca mais fomos passear às hortas — disse a Rosa.

A Rosa tem a tarde de domingo livre, de quinze em quinze dias, e sempre na condição de voltar para nossa casa a tempo de fazer o jantar.
A minha avó até acha que é descanso a mais, e que há muitas casas que nem isso dão às criadas.

- Coitada…- diz sempre a minha mãe — farta-se de trabalhar!
- Farta-se é de mandriar! — diz a minha avó, para quem os outros nunca trabalham o suficiente.

Ontem ao jantar, o meu pai deixou escapar:

- Isto está por pouco.

A minha mãe ficou muito pálida:

- Pelo amor de Deus, Fernando!, diga-me que não está metido em nada!

A Rosa foi a correr fazer chá de tília, enquanto o meu pai tentava sossegá-la:

- Tenha calma! Já sabe que, no seu estado, não se pode enervar!

Eu ia perguntar em que estado é que a minha mãe se encontrava (no colégio ensinavam-nos o estado sólido, o líquido e o gasoso, mas parecia-me que não era desses estados que o meu pai falava) quando a minha avó desatou a gritar, que eu até saltei na cadeira:

- Não se pode enervar, não se pode enervar, isso é tudo muito bonito, mas como é que uma pessoa não se há-de enervar, quando andam para aí esses maçónicos, e mais esses anarquistas, que devem ter feito pacto com o diabo, por isso é que todos os bispos do país se reuniram há dias aqui em Lisboa, o de Braga, o de Évora, o do Coimbra, o do Porto, o da Guarda, todos, senhor meu genro, olhe que não faltou nem um!, nunca me lembro de uma coisa assim ter acontecido! Ora para os bispos se juntarem aqui todos, eles que devem ter tanto trabalho, coitadinhos, é porque temem pela salvação das nossas almas, é porque a coisa é mesmo séria!
Ninguém lhe respondeu, e ela acabou por se levantar da mesa e ir para o quarto.
- Mais umas rezas a São Expedito, a ver se ajuda os bispos a salvarem as nossas almas…- disse o meu pai, tentando sorrir.

Nestes últimos tempos, a minha mãe repetia muito essa frase: “diga-me que não está metido em nada”. Mas o meu pai desviava sempre a conversa e nunca respondia.
Mas, desta vez, deu-lhe um beijo na testa e disse:

- Quanto menos souberem, melhor para todos!

Se a Rosa não tem chegado nesse instante com o chá de tília, acho que a minha mãe tinha desmaiado logo ali.

- Ao menos prometa que tem muito cuidado!
- Prometo — disse o meu pai – Sabe bem que os republicanos não são loucos!

E ficaram em silêncio.
Só espero que S. Expedito, para além de ajudar os bispos, também dê uma ajudinha aos republicanos.

«JN» de 27 Mar 10

1 comentário:

  1. Quando for grande, quero escrever assim! :) Soberbo! :) aguardo a continuação, eheheh. :)

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