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Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
REBENTAM bombas quase todos os dias.
Acho mesmo que o som já se tornou tão banal como a voz do homem do pitrolino, do aguadeiro, ou da preta a vender mexilhão.
Há dias ouvi um tiro e disse:
- É o canhão do Arsenal.
O canhão do Arsenal dispara sempre um tiro, a que se segue um apito prolongado - e toda a gente sabe que é meio dia.
Mas desta vez o meio-dia vinha longe e, em vez do apito prolongado, veio uma série de cinco ou seis tiros, uma grande balbúrdia, gente a gritar e a correr pela rua abaixo, e a voz da Rosa:
- Coitadinhos, lá vão mais uns para o Limoeiro.
O Limoeiro deve ser a pior cadeia do país. Lembro-me de ouvir o Professor Buíça dizer que os que para lá entravam eram atirados a monte, espancados todos os dias e, de comida, só tinham direito a uma tigela de um líquido que mais parecia água suja.
A minha avó bem reza a Santo Expedito, mas o santo deve andar muito atarefado pois, pelas conversas que oiço, o país já não tem conserto.
Pelo menos é o que diz o meu pai quando acaba de ler “O Século”, acende uma cigarrilha, e conversa até ser hora de nos recolhermos.
Mas esta noite a minha mãe foi quem mais falou.
Tinha ido à médica.
A minha avó está sempre a dizer que não percebe por que é que a minha mãe há-de ter uma mulher médica, em vez de ter um homem, como toda a gente, e não acredita em nada do que a Dra. Adelaide diz no seu consultório da Baixa.
- Mulheres querem-se na cozinha… murmura.
Quando vai ao consultório da Dra. Adelaide, a minha mãe traz sempre muitas coisas para contar.
Desta vez era sobre um encontro que tinha havido na Dinamarca, com representantes de 17 países, onde tinha sido proposta a criação de um Dia Internacional da Mulher.
- Desvarios republicanos…- murmurou logo a minha avó.
A Dra. Adelaide (Adelaide Cabete, como está escrito na placa) é das poucas mulheres que conseguiram ser médicas mas, apesar de exercer medicina há mais de dez anos, as pessoas ainda torcem o nariz, e dizem que melhor seria se fosse para casa coser meias.
A minha mãe diz que não há como a Dra. Adelaide para defender as mulheres e as crianças, e que por isso é que gosta tanto de lá ir. O meu pai também acha bem que a minha mãe lá vá, porque é na livraria dele que a Dra. Adelaide compra todos os livros de que precisa.
Eu é que estou um bocado preocupado porque, nestas últimas semanas, a minha mãe tem ido muitas vezes ao consultório da Dra. Adelaide.
Mas eu olho para ela e não me parece doente. Anda até com ar feliz, apesar das bombas e dos tiros.
O meu pai há dias olhou para ela, e murmurou:
- Mas que raio de altura é que nós fomos escolher…
- Altura para quê? — perguntei.
Mas ele entrou no escritório e não me respondeu.
Olhei também para a minha mãe. Estava ligeiramente corada.
E até me parece que tem engordado um bocadito.
Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
REBENTAM bombas quase todos os dias.
Acho mesmo que o som já se tornou tão banal como a voz do homem do pitrolino, do aguadeiro, ou da preta a vender mexilhão.
Há dias ouvi um tiro e disse:
- É o canhão do Arsenal.
O canhão do Arsenal dispara sempre um tiro, a que se segue um apito prolongado - e toda a gente sabe que é meio dia.
Mas desta vez o meio-dia vinha longe e, em vez do apito prolongado, veio uma série de cinco ou seis tiros, uma grande balbúrdia, gente a gritar e a correr pela rua abaixo, e a voz da Rosa:
- Coitadinhos, lá vão mais uns para o Limoeiro.
O Limoeiro deve ser a pior cadeia do país. Lembro-me de ouvir o Professor Buíça dizer que os que para lá entravam eram atirados a monte, espancados todos os dias e, de comida, só tinham direito a uma tigela de um líquido que mais parecia água suja.
A minha avó bem reza a Santo Expedito, mas o santo deve andar muito atarefado pois, pelas conversas que oiço, o país já não tem conserto.
Pelo menos é o que diz o meu pai quando acaba de ler “O Século”, acende uma cigarrilha, e conversa até ser hora de nos recolhermos.
Mas esta noite a minha mãe foi quem mais falou.
Tinha ido à médica.
A minha avó está sempre a dizer que não percebe por que é que a minha mãe há-de ter uma mulher médica, em vez de ter um homem, como toda a gente, e não acredita em nada do que a Dra. Adelaide diz no seu consultório da Baixa.
- Mulheres querem-se na cozinha… murmura.
Quando vai ao consultório da Dra. Adelaide, a minha mãe traz sempre muitas coisas para contar.
Desta vez era sobre um encontro que tinha havido na Dinamarca, com representantes de 17 países, onde tinha sido proposta a criação de um Dia Internacional da Mulher.
- Desvarios republicanos…- murmurou logo a minha avó.
A Dra. Adelaide (Adelaide Cabete, como está escrito na placa) é das poucas mulheres que conseguiram ser médicas mas, apesar de exercer medicina há mais de dez anos, as pessoas ainda torcem o nariz, e dizem que melhor seria se fosse para casa coser meias.
A minha mãe diz que não há como a Dra. Adelaide para defender as mulheres e as crianças, e que por isso é que gosta tanto de lá ir. O meu pai também acha bem que a minha mãe lá vá, porque é na livraria dele que a Dra. Adelaide compra todos os livros de que precisa.
Eu é que estou um bocado preocupado porque, nestas últimas semanas, a minha mãe tem ido muitas vezes ao consultório da Dra. Adelaide.
Mas eu olho para ela e não me parece doente. Anda até com ar feliz, apesar das bombas e dos tiros.
O meu pai há dias olhou para ela, e murmurou:
- Mas que raio de altura é que nós fomos escolher…
- Altura para quê? — perguntei.
Mas ele entrou no escritório e não me respondeu.
Olhei também para a minha mãe. Estava ligeiramente corada.
E até me parece que tem engordado um bocadito.
«JN» de 13 Mar 10
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