sábado, 6 de março de 2010

UMA REVISTA NOVA

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

QUANDO O MEU PAI me chamou à livraria, não foi só para falar do Júlio Verne.
Em cima do balcão, uma revista de capa vermelha.

- Já vai em quatro números…- disse – E isto é mesmo muito importante, Zé Joaquim!

Passou-me para as mãos o último número.
Sobre o vermelho da capa, a imagem de uns braços acorrentados, e o título: “Alma Nacional”.
Por baixo, uma frase que eu reconheci logo, porque o meu pai a tem emoldurada na parede do escritório lá de casa:
“Depois do pão, a educação é a principal necessidade do povo.”
Lembro-me que no dia em que ele a colocou, a minha avó disse:

- Para mim, isso está errado.
- Já calculava…- murmurou o meu pai.

Ela fez que não ouviu e continuou:

- Devia ser “ a principal necessidade dos homens”, porque do que as mulheres necessitam é de saber fazer um bom cozido, e uma barrela a preceito! Muita educação só lhes faz mal. É por isso que eu nem posso ouvir a sua mulher quando se põe com aquela lenga-lenga do voto. Mas onde é que já se viu as mulheres votarem?

Normalmente nem o meu pai nem a minha mãe lhe respondem.
Mas naquele dia a minha mãe irritou-se e disse:

- Então se as mulheres não devem poder votar, se não servem para nada a não ser para tratarem da casa — diga-me lá como é que servem para rainhas?

Foi uma tirada de génio.
A minha avó, como sempre, respondeu que “isso era diferente”, a minha mãe insistiu, “diferente em quê?”, e a minha avó, também como sempre, quando a conversa não lhe agrada, levantou-se da cadeira e disse:

- Vou para o meu oratório rezar a S. Expedito, santo das causas impossíveis.

A minha avó tem uma particular fé em S. Expedito. Mas ainda não descobri que “causas impossíveis” ´
é que ela gostaria de ver “possíveis”, com a ajuda do santo. Mas deve ter a ver com a monarquia.
Mas estava eu a falar da frase que vinha na revista.
O meu pai explicou-me que era de Danton, “um dos heróis da Revolução Francesa!”

- Ainda está vivo? — perguntei.

Parecia-me uma pergunta normal, mas o meu pai ficou muito ofendido, disse que, aos 14 anos, eu já tinha obrigação de saber que a Revolução Francesa tinha acontecido no século 18, e o que é que me ensinavam no colégio.
Ia responder “ensinam-me o “D. Jayme”, mas calei-me. Depois do pão e da educação, o silêncio às vezes também é uma grande necessidade do povo...
O meu pai acalmou, e disse que o director era o dr. António José, e se eu não me lembrava de ter ido há dias com ele a Sintra a um comício, em que o dr. António José tinha anunciado uma revista nova, “dedicada a todos os patriotas, a todos os que lutam sem tréguas…”

- Lembro-me.

Disse eu, para que o meu pai não se imaginasse o Dr. António José, e fizesse um comício republicano em plena livraria.

- Aí a tens — rematou.

O Dr. António José é um homem extraordinário.
Ele fala e entusiasma toda a gente.
Até a mim. Que não me lembro nem de uma palavra do que ele disse no comício de Sintra.

«JN» de 6 Mar 10

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