segunda-feira, 15 de março de 2010

TARDE DE CHUVA

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Por Alice Vieira

EU TINHA PROMETIDO chegar cedo, muito antes da reunião, para podermos beber um café e dar-nos ao luxo de perder alguns minutos em amena, saudável, imprescindível cusquice.
Sempre fui de opinião que nada melhor do que meia hora a falar de coisa nenhuma, para depois se resolver tudo.
O meu contributo para a salvação do planeta é não ter automóvel, e sou feroz adepta de metro e autocarro.
Isto, evidentemente, quando não posso utilizar o meu meio de transporte preferido, a saber: as solas dos sapatos.
Mas convenhamos que não é o meio de transporte mais recomendável entre o Saldanha e Alfragide. (Eu sei que o Cesário Verde ia a pé da Baixa até Linda-a-Velha, mas morreu tuberculoso aos 30 anos, o que prova que nem sempre o exercício físico faz bem à saúde…)
Mas para chegar cedo, decidi enfiar-me num táxi, apanhado milagrosamente naquela tarde de chuva.
Entro, digo boa tarde, o nome da rua para onde vou, e oiço uma voz furiosa:
“Mas o que é que te passou pela cabeça?!”
Mal tenho tempo de me recompor e logo entendo que aquilo não é para mim, o taxista fala freneticamente ao telemóvel, faz-me um aceno de mão e de cabeça para que eu perceba que já sabe para onde eu quero ir—e lá nos pomos a caminho, com a voz dele sempre em música de fundo.
A conversa anima porque entretanto (“passa-lhe aí o telemóvel ”) entra na conversa um Senhor Doutor, a quem o taxista pede muitas desculpas, explicando que “ esse meu colega é meio passado dos carretos, e por isso é preciso a gente dar-lhe um certo desconto”
Mas enquanto ele está nestas explicações, toca outro telemóvel, e a voz dele amacia, oh como amacia!, e passa a dividir as atenções entre o Senhor Doutor (que já percebi tratar-se de um advogado) e o colega passado dos carretos (que já percebi tratar-se de um tonto prestes a embarcar na compra de um carro em 2ª mão) e a Xana ( que já percebi tratar-se da Xana, prometendo-lhe arroz de pato se ele passar lá por casa).
Tento dizer-lhe qual o melhor caminho para se fugir às obras a seguir a Sete Rios, mas o colega passado dos carretos insiste que o carro em 2ªmão está mesmo como novo, e ele volta a mandar passar o telemóvel ao Senhor Doutor, para ver se ele lhe põe alguma ordem nas ideias, “tá-se mesmo a ver que é um negócio da tanga, ele agora paga pouco mas depois é preciso motor, é preciso jantes, é preciso tudo!”.
E a Xana pergunta “mas tu estás a falar com quem?” e ele, ”nada, estou com um cliente”, e o cliente, que devo ser eu, desiste de lhe sugerir outro caminho porque entretanto, e como era de prever, caímos em plenas obras a seguir a Sete Rios.
A Xana cansa-se (“´pera aí, ó Xaninha!”) e desliga, mas logo há outro em linha, a perguntar-lhe se ele se esqueceu do cliente da Ribeira das Naus, “ó caraças, já não vou a tempo! vai lá tu, apanha o gajo e explica-lhe” --e desliga para logo ligar para outro número, “ó Sr. Vítor, vai aí um colega meu buscá-lo, que eu não posso, estou aqui numa encrenca dos diabos, acho que houve um acidente aqui na estrada, nem para trás nem para a frente!”, e do Sr. Vítor passa para o colega anterior, ”já falei com o gajo, dizes que vais da minha parte, que ele está à tua espera”, e desliga, e retoma a questão do Senhor Doutor e do colega passado dos carretos — e eu chego, exausta, ao meu destino.
Aponta-me o taxímetro, faz o troco - sem largar a conversa com o colega e com o Senhor Doutor.
Na empresa estranham o meu atraso e o meu ar cansado, a pedir sofregamente um café e uma aspirina.
E todos pensam que enlouqueci quando lhes digo que venho de um complicado negócio de venda de carros em segunda mão, que pelo caminho passei pela Ribeira das Naus — e que tudo me cheira a arroz de pato.

«ACTIVA» de Mar 10

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