Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
O MEU PAI anda preocupado.
“Isto só lá vai com uma revolução” — ouvi-o murmurar há dias.
E na livraria, onde entra muita gente que lá fica na conversa com ele, já ouvi muitos dizerem a mesma coisa.
Eu acho que em Portugal nunca houve uma revolução. Na escola falou-se de uma “revolução liberal” em 1820, muito importante porque deu ao país a primeira constituição — mas não é de uma revolução assim que eu falo.
É de uma mesmo a doer, como a francesa — que o meu pai me explicou muito bem depois daquele dia em que descobriu que eu não sabia quem era o Danton.
Ou como a americana, cheia de índios e cowboys e pradarias e desfiladeiros e muitos tiros e muito sangue.
Nem estou a ver, aqui em Lisboa, como é que se fazia uma revolução dessas.
Mas ultimamente não se fala de outra coisa.
Acho mesmo que as únicas pessoas que não devem falar disso são aqueles que moram nas Necessidades.
Porque, nestes últimos tempos, enquanto cá em casa o meu pai se preocupa, por lá tem sido um corrupio de festas e jantares e comemorações: no fim do mês, foi um grande banquete no Palácio com “as mais altas individualidades do Estado” (não sei quem sejam, mas devem ser todos muito importantes. Pelo menos, devem ser todos muito altos.); há três dias, foi uma grande festa desportiva no Quartel de Marinheiros; depois de amanhã entra no Tejo um navio russo e lá vai o rei almoçar a bordo; e ontem houve festa outra vez, porque o infante D. Afonso prestou juramento na Câmara dos Deputados como Príncipe Real.
Quer dizer: se houver outra cena de tiros como há dois anos e D. Manuel morrer, é ele o rei.
Tenho pena do D. Afonso, coitado, que nunca na vida deve ter pensado em ser Príncipe Real. Irmão de D. Carlos, deve ter suspirado de alívio assim que nasceram os sobrinhos: o trono estava garantido.
O atentado de há dois anos é que não estava nos seus projectos…
- Ao Arreda, quem o quiser ver feliz é dar-lhe um automóvel para as mãos…- disse o meu pai ontem ao jantar.
A minha avó ofendeu-se logo:
- Porque é que o senhor meu genro não se refere a Sua Alteza pelo seu nome, em vez de usar essa alcunha ordinária?
- Ordinária porquê? — exclamou o meu pai — Toda a gente sabe que de automóveis é que ele gosta! E todos o vêem por essas ruas de Lisboa, numa velocidade como se estivesse nalguma corrida, a berrar “arreda! arreda!” para as pessoas o deixarem passar! Estava a pedir a alcunha…
Eu não disse nada, mas fiquei cá a pensar que, se eu fosse o D. Afonso, a ter de carregar até ao fim da vida com o nome de (levei dois dias a sabê-lo de cor!) “Afonso Henrique Maria Luís Pedro de Alcântara Carlos Humberto Amadeu Fernando António Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis João Augusto Júlio Valfando Inácio de Saxe-Coburgo-Gota e Bragança” — havia de me sentir muito feliz por ter uma alcunha com uma palavra só.
“Isto só lá vai com uma revolução” — ouvi-o murmurar há dias.
E na livraria, onde entra muita gente que lá fica na conversa com ele, já ouvi muitos dizerem a mesma coisa.
Eu acho que em Portugal nunca houve uma revolução. Na escola falou-se de uma “revolução liberal” em 1820, muito importante porque deu ao país a primeira constituição — mas não é de uma revolução assim que eu falo.
É de uma mesmo a doer, como a francesa — que o meu pai me explicou muito bem depois daquele dia em que descobriu que eu não sabia quem era o Danton.
Ou como a americana, cheia de índios e cowboys e pradarias e desfiladeiros e muitos tiros e muito sangue.
Nem estou a ver, aqui em Lisboa, como é que se fazia uma revolução dessas.
Mas ultimamente não se fala de outra coisa.
Acho mesmo que as únicas pessoas que não devem falar disso são aqueles que moram nas Necessidades.
Porque, nestes últimos tempos, enquanto cá em casa o meu pai se preocupa, por lá tem sido um corrupio de festas e jantares e comemorações: no fim do mês, foi um grande banquete no Palácio com “as mais altas individualidades do Estado” (não sei quem sejam, mas devem ser todos muito importantes. Pelo menos, devem ser todos muito altos.); há três dias, foi uma grande festa desportiva no Quartel de Marinheiros; depois de amanhã entra no Tejo um navio russo e lá vai o rei almoçar a bordo; e ontem houve festa outra vez, porque o infante D. Afonso prestou juramento na Câmara dos Deputados como Príncipe Real.
Quer dizer: se houver outra cena de tiros como há dois anos e D. Manuel morrer, é ele o rei.
Tenho pena do D. Afonso, coitado, que nunca na vida deve ter pensado em ser Príncipe Real. Irmão de D. Carlos, deve ter suspirado de alívio assim que nasceram os sobrinhos: o trono estava garantido.
O atentado de há dois anos é que não estava nos seus projectos…
- Ao Arreda, quem o quiser ver feliz é dar-lhe um automóvel para as mãos…- disse o meu pai ontem ao jantar.
A minha avó ofendeu-se logo:
- Porque é que o senhor meu genro não se refere a Sua Alteza pelo seu nome, em vez de usar essa alcunha ordinária?
- Ordinária porquê? — exclamou o meu pai — Toda a gente sabe que de automóveis é que ele gosta! E todos o vêem por essas ruas de Lisboa, numa velocidade como se estivesse nalguma corrida, a berrar “arreda! arreda!” para as pessoas o deixarem passar! Estava a pedir a alcunha…
Eu não disse nada, mas fiquei cá a pensar que, se eu fosse o D. Afonso, a ter de carregar até ao fim da vida com o nome de (levei dois dias a sabê-lo de cor!) “Afonso Henrique Maria Luís Pedro de Alcântara Carlos Humberto Amadeu Fernando António Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis João Augusto Júlio Valfando Inácio de Saxe-Coburgo-Gota e Bragança” — havia de me sentir muito feliz por ter uma alcunha com uma palavra só.
Confesso... perdi-me no tempo... banquetes nas Necessidades, reizinhos em graaandes automóveis pelas ruas a acelerar... foi ontem... ou hoje?
ResponderEliminarRevolução! "Isto" só lá vai com uma revolução à séria...!
Isto está a precisar de alguém que deponha estes reizinhos e... queira ser novo reizinho... para acelerar também e mandar arredar o povinho, pobrezinho... ranhozinho, incultozinho...
Será que nos banquetes nas Necessidades... servem lombinhos de povinho assaltado?!
A verdade é que só lá vamos, mesmo, com uma revolução. Mas a seguir precisaríamos de outra...e de outra...até se dar a verdadeira revolução, a evolução do espirito humano. Nesse dia acordaremos em terras de Utopia! :D
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