Por Alice Vieira
OLHOU para o espelho.
Às vezes pensava no que lhe aconteceria se fosse a outra, a do tempo da infância, a que se metia pelo espelho dentro, a que se deixava cair pelo poço, a que seguia lebres e chapeleiros malucos, a que pedia “dêem-me histórias com muita loucura por dentro” .
Ela sempre gostara de histórias e de pessoas com muita loucura por dentro.
Pessoas iguais a ela.
Pessoas iguais a ele.
O risco sobre a pálpebra direita está meio esborratado, foi da pressa, claro, mas está no céu quem inventou os cottonettes, pensa, enquanto rapidamente tudo se recompõe.
Escolhe os brincos, tem quatro caixas cheias deles, diferentes para cada estação do ano, mais compridos para quando é verão e tem o cabelo curto, mais curtos para quando é inverno, e não dá jeito andar a correr à chuva com aquela coisa toda a chocalhar e a prender-se no cachecol ou nas golas altas das camisolas.
Ele deve estar a chegar.
De repente lembra-se que lhe devia ter pedido que não trouxesse a mota.
Por uma vez na vida, que viesse de carro.
Claro que ela também gosta da mota, não há melhor sensação do que apanhar o vento pela cara, agarrada a ele pelas estradas a não sei quantos à hora, mas o seu espírito motard não é tão furioso como o dele e, de vez em quando, sabe-lhe bem vestir saia rodada, daquelas até aos pés, daquele linho indiano enrugado que não é preciso engomar e se torce todo na secagem.
Mas saias e mota é que não jogam mesmo nada.
Por isso se calhar o melhor é jogar pelo seguro e optar pelas calças, jeans desbotados que já viram melhores dias, mas agora são todos assim, nem se nota quando são novos ou velhos.
Ainda não chegou ao cúmulo de pegar numas tesouras e fazer cortes pelas pernas abaixo, e deixar aquilo a desfiar-se, apesar de tudo ainda lhe faz alguma confusão pagar uma pipa de massa para ficar com ar de sem-abrigo.
Escolhe a t-shirt apropriada, de manga comprida porque ainda não faz muito calor, e em cima da mota a não sei quantos à hora, o frio é sempre de acautelar.
Esteve para vestir a que diz “Aleluia! Encontrei Jesus! Estava no balneário do Benfica!”, que encomendou pela net num dia em que o Sporting levara uma goleada — mas desiste, sabe lá quem vão encontrar pelo caminho, e as pessoas agora ofendem-se por tudo.
“Andam muito chocadiças”, como lhe diz a empregada.
Opta por uma que não desperta paixões clubísticas, “Não sou grega mas também estou falida”, e que até mostra o seu interesse pela actual conjuntura política. Motards, mas a par do que se passa.
Ouve o ronco do motor a aproximar-se. Ainda bem que se decidira pelas calças.
Pela janela acena-lhe, vê que ele traz o pendura do costume, e fica contente a pensar que sempre é uma boa companhia.
Também fica contente por ele trazer o lenço de riscado vermelho atado à cabeça, uma vez que a sua t-shirt é de fundo vermelho e assim sempre vão ambos a condizer.
Abre a porta ao miúdo, que resmunga uma coisa parecida com bom dia e se enfia pelo corredor.
Deita as chaves de casa para dentro de um bolso das calças, o telemóvel e o cartão multibanco para o outro, de nada mais precisa para a sua liberdade absoluta.
Ele ri-se a ler a t-shirt, ela enfia o capacete, e num momento desaparecem ao fundo da rua.
Em casa, os dois netos só têm um pouco de receio do que os vizinhos possam comentar.
OLHOU para o espelho.
Às vezes pensava no que lhe aconteceria se fosse a outra, a do tempo da infância, a que se metia pelo espelho dentro, a que se deixava cair pelo poço, a que seguia lebres e chapeleiros malucos, a que pedia “dêem-me histórias com muita loucura por dentro” .
Ela sempre gostara de histórias e de pessoas com muita loucura por dentro.
Pessoas iguais a ela.
Pessoas iguais a ele.
O risco sobre a pálpebra direita está meio esborratado, foi da pressa, claro, mas está no céu quem inventou os cottonettes, pensa, enquanto rapidamente tudo se recompõe.
Escolhe os brincos, tem quatro caixas cheias deles, diferentes para cada estação do ano, mais compridos para quando é verão e tem o cabelo curto, mais curtos para quando é inverno, e não dá jeito andar a correr à chuva com aquela coisa toda a chocalhar e a prender-se no cachecol ou nas golas altas das camisolas.
Ele deve estar a chegar.
De repente lembra-se que lhe devia ter pedido que não trouxesse a mota.
Por uma vez na vida, que viesse de carro.
Claro que ela também gosta da mota, não há melhor sensação do que apanhar o vento pela cara, agarrada a ele pelas estradas a não sei quantos à hora, mas o seu espírito motard não é tão furioso como o dele e, de vez em quando, sabe-lhe bem vestir saia rodada, daquelas até aos pés, daquele linho indiano enrugado que não é preciso engomar e se torce todo na secagem.
Mas saias e mota é que não jogam mesmo nada.
Por isso se calhar o melhor é jogar pelo seguro e optar pelas calças, jeans desbotados que já viram melhores dias, mas agora são todos assim, nem se nota quando são novos ou velhos.
Ainda não chegou ao cúmulo de pegar numas tesouras e fazer cortes pelas pernas abaixo, e deixar aquilo a desfiar-se, apesar de tudo ainda lhe faz alguma confusão pagar uma pipa de massa para ficar com ar de sem-abrigo.
Escolhe a t-shirt apropriada, de manga comprida porque ainda não faz muito calor, e em cima da mota a não sei quantos à hora, o frio é sempre de acautelar.
Esteve para vestir a que diz “Aleluia! Encontrei Jesus! Estava no balneário do Benfica!”, que encomendou pela net num dia em que o Sporting levara uma goleada — mas desiste, sabe lá quem vão encontrar pelo caminho, e as pessoas agora ofendem-se por tudo.
“Andam muito chocadiças”, como lhe diz a empregada.
Opta por uma que não desperta paixões clubísticas, “Não sou grega mas também estou falida”, e que até mostra o seu interesse pela actual conjuntura política. Motards, mas a par do que se passa.
Ouve o ronco do motor a aproximar-se. Ainda bem que se decidira pelas calças.
Pela janela acena-lhe, vê que ele traz o pendura do costume, e fica contente a pensar que sempre é uma boa companhia.
Também fica contente por ele trazer o lenço de riscado vermelho atado à cabeça, uma vez que a sua t-shirt é de fundo vermelho e assim sempre vão ambos a condizer.
Abre a porta ao miúdo, que resmunga uma coisa parecida com bom dia e se enfia pelo corredor.
Deita as chaves de casa para dentro de um bolso das calças, o telemóvel e o cartão multibanco para o outro, de nada mais precisa para a sua liberdade absoluta.
Ele ri-se a ler a t-shirt, ela enfia o capacete, e num momento desaparecem ao fundo da rua.
Em casa, os dois netos só têm um pouco de receio do que os vizinhos possam comentar.
In ‘ACTIVA’ de Abril 2010
adorei.rssss. nao me pergunte por que.. rsssss
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