domingo, 10 de janeiro de 2010

FAMÍLIA É SEMPRE FAMÍLIA

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TINHA SIDO COMPLICADO arranjar data que conviesse a todos, mas finalmente tudo se resolvera - e os cinco casais de irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, pela primeira vez em 30 anos, iam ter férias em conjunto.
Era o sonho de uma vida inteira.
Áfricas, Brasis, emigrâncias tinham-nos afastado — e agora, finalmente reformados, queriam pôr a vida em dia, contar histórias, lembrar os que já tinham partido, recordar aventuras, rir em serões de janelas abertas sobre o mar, distribuir afectos e memórias.
Iam ser, pela primeira vez, uma família, daquelas felizes e despreocupadas, como nos cartazes de publicidade às companhias de seguros.
O irmão mais velho, o único a viver em Lisboa, é que tinha alugado a casa para o mês inteiro, e o reencontro foi uma alegria, pareciam miúdos de escola quando voltavam de férias e queriam contar tudo logo no primeiro intervalo.
Uma das cunhadas perguntou apenas se por acaso ali não haveria melgas, e o mais velho zangou-se, melgas?, mas ela pensava que estava no Pantanal ou quê? Não voltaram a tocar no assunto.
Ao fim do segundo dia ainda não tinham decidido quem é que fazia a comida, quem é que lavava a loiça, e como se dividiam as despesas.
“O Ricardo é um machista de primeira”, murmurou então uma das irmãs, “ nem para ir buscar uma cerveja ao frigorífico ele se levanta do sofá, palavra que não sei como a Carmo o aguenta!”
Mas ou o murmúrio não foi suficientemente murmurado, ou as paredes não eram suficientemente fortes, o resultado é que a Carmo saiu em defesa do marido, e que os das outras não eram melhores, que ela bem os via sentados à mesa enquanto todas andavam num virote a levar e trazer pratos e travessas da cozinha, ao que o dito Ricardo respondeu que já estava muito velho para mudar e, para ele, cozinha era lugar de mulherio, e fim de papo.
“Era o que faltava, que me mandassem calar na minha casa e na minha terra!”, berrou o mais velho, em jeito de anfitrião ofendido.”
“Mas quem é que mandou calar quem?”, disse a mais nova, meio conciliadora, e todos fizeram um esforço e acalmaram.
“Todos juntos, que bom!”, exclamou de novo a mais nova no dia seguinte, à mesa do pequeno almoço, “o nosso pai é que havia de gostar de nos ver!”
“O nosso pai?”, explodiu a irmã do meio, “ o nosso pai nunca gostou de nós! Só as vezes que ele me batia com aquele vime que escondia atrás da porta! Acho que ainda tenho as marcas!”
“A mim nunca me tocou!”
“Pudera, eras o queridinho, denunciavas toda a gente, ainda me lembro quando lhe foste dizer que eu tinha bebido a garrafa inteira de jeropiga, seu acusa-cristos!”
“Seu quê? Repete lá isso, repete a ver se tens coragem?”
Ela teve e repetiu e ele só não lhe foi à cara porque os outros o seguraram, “então, Zé, estamos aqui em família, tão felizes!”
Ao quarto dia houve um problema de contas de supermercado, “estás-me a acusar de meter dinheiro ao bolso, é?”, “ó Felícia mas quem é que está a dizer uma coisa dessas?”
Aguentaram cinco dias.
Fizeram as malas e cada casal foi à sua vida, prometendo todos mandar um belo cartão de Boas Festas pelo Natal.
Porque família é sempre família.

in "ACTIVA" Outubro 2008

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