DESEMBRULHA O PRESENTE que o marido lhe deu e fica muito tempo a olhar para ele, sem saber se há-de rir se há-de chorar.
- Que raio de prenda - murmura a filha — Um papel velho numa moldura…
Ela não responde.
Dias antes tinha encontrado aquele papel, com os nomes escritos todos em maiúsculas, seguidos do nome de um objecto, livro, disco, camisola, cachecol, etc, e, no fim de tudo, Madrinha, só isso, e ela a querer desviar os olhos daquele papel e a não conseguir, e de repente a voz da mãe há 40 anos gritando “claro, esqueceste-te da Madrinha, pois olha que sem ela não eras nada, ouviste? Nada! Mas tu tens sempre muito em que pensar, já para não falar nas asneiras que andas a fazer, que eu bem sei, julgas que sou burra mas não sou!”
E ela sentindo-se a sufocar naquela casa, com as paredes cheias de quadros de gôndolas e açudes e meninos de lágrima a escorrer pela cara, onde paira a sombra da Madrinha, onde tudo se faz com o dinheiro da Madrinha, porque a Madrinha é que lhes destina a vida. E agora era tempo de Natal, e ela tinha comprado prendas para toda a gente da lista que escrevera a mando da mãe.
Para todos menos para a Madrinha, mas apenas porque estava muito cansada, mas a mãe tinha decidido implicar, e gritou, gritou, e ela disse que tinha sido apenas um esquecimento e ainda foi pior.
Ela não consegue tirar os olhos do papel e com ele regressa a voz da mãe, e ela a tentar não responder mas a mãe tinha a suprema arte de saber atingir nos pontos onde tudo doía mais, sobretudo desde que descobrira que ela se encontrava com o Carlos, “uma desavergonhada, é o que tu és, o que não diria a Madrinha se soubesse”, as palavras da mãe a rasgarem o fundo do seu coração, e para ver se a mãe se calava ela disse então uma tolice qualquer, “por que é que pendurou este quadro, mãe, é tão feio”, e de repente a mãe a apontar para o fim do corredor, “ se não gostas tens bom remédio, a porta é ali”
Quer deitar fora o papel mas não é capaz, as coisas que se guardam, meu Deus!, e por onde terá andado este papel durante estes anos todos, este papel que lhe traz a voz da mãe e depois a dela, “se é assim que quer”, ela abrindo a porta e saindo para a rua sem mais nada, mais nada a não ser aquela lista idiota cheia de nomes de pessoas para quem comprou prendas porque era tempo de natal e assim a mãe lhe tinha ordenado que fizesse.
Olha mais uma vez para o papel e só se lembra de o ter nas mãos e de não saber o que fazer, nem para onde ir — mas com a certeza absoluta de que, naquele natal, era ela que iria renascer. Noutra vida. Noutro lugar.
- Que papel é esse?
Estremeceu, não tinha dado pela entrada do marido na sala.
Entregou-lho e ele abriu os olhos de espanto:
- Tu guardaste isto?!
Ela encolheu os ombros.
- Se calhar... Nem me lembrava. Abri uma gaveta e lá estava, no meio de papelada velha…
- Caramba…Há quantos anos…Dá cá essa porcaria, que eu deito fora.
Ela hesitou em dar-lhe o papel, mas no fim entregou-lho, para que quereria ela aquilo, realmente.
- Diga lá, mãe, o que é isto? — a voz da filha a trazê-la à realidade.
Ela olha para o marido, e ouve-se, há quarenta anos, a murmurar:
- Posso ficar contigo?
A filha continua a olhar para ela.
- Isto — responde ela, finalmente, — é a prenda de Natal mais bonita que o teu pai alguma vez me deu.
- Que raio de prenda - murmura a filha — Um papel velho numa moldura…
Ela não responde.
Dias antes tinha encontrado aquele papel, com os nomes escritos todos em maiúsculas, seguidos do nome de um objecto, livro, disco, camisola, cachecol, etc, e, no fim de tudo, Madrinha, só isso, e ela a querer desviar os olhos daquele papel e a não conseguir, e de repente a voz da mãe há 40 anos gritando “claro, esqueceste-te da Madrinha, pois olha que sem ela não eras nada, ouviste? Nada! Mas tu tens sempre muito em que pensar, já para não falar nas asneiras que andas a fazer, que eu bem sei, julgas que sou burra mas não sou!”
E ela sentindo-se a sufocar naquela casa, com as paredes cheias de quadros de gôndolas e açudes e meninos de lágrima a escorrer pela cara, onde paira a sombra da Madrinha, onde tudo se faz com o dinheiro da Madrinha, porque a Madrinha é que lhes destina a vida. E agora era tempo de Natal, e ela tinha comprado prendas para toda a gente da lista que escrevera a mando da mãe.
Para todos menos para a Madrinha, mas apenas porque estava muito cansada, mas a mãe tinha decidido implicar, e gritou, gritou, e ela disse que tinha sido apenas um esquecimento e ainda foi pior.
Ela não consegue tirar os olhos do papel e com ele regressa a voz da mãe, e ela a tentar não responder mas a mãe tinha a suprema arte de saber atingir nos pontos onde tudo doía mais, sobretudo desde que descobrira que ela se encontrava com o Carlos, “uma desavergonhada, é o que tu és, o que não diria a Madrinha se soubesse”, as palavras da mãe a rasgarem o fundo do seu coração, e para ver se a mãe se calava ela disse então uma tolice qualquer, “por que é que pendurou este quadro, mãe, é tão feio”, e de repente a mãe a apontar para o fim do corredor, “ se não gostas tens bom remédio, a porta é ali”
Quer deitar fora o papel mas não é capaz, as coisas que se guardam, meu Deus!, e por onde terá andado este papel durante estes anos todos, este papel que lhe traz a voz da mãe e depois a dela, “se é assim que quer”, ela abrindo a porta e saindo para a rua sem mais nada, mais nada a não ser aquela lista idiota cheia de nomes de pessoas para quem comprou prendas porque era tempo de natal e assim a mãe lhe tinha ordenado que fizesse.
Olha mais uma vez para o papel e só se lembra de o ter nas mãos e de não saber o que fazer, nem para onde ir — mas com a certeza absoluta de que, naquele natal, era ela que iria renascer. Noutra vida. Noutro lugar.
- Que papel é esse?
Estremeceu, não tinha dado pela entrada do marido na sala.
Entregou-lho e ele abriu os olhos de espanto:
- Tu guardaste isto?!
Ela encolheu os ombros.
- Se calhar... Nem me lembrava. Abri uma gaveta e lá estava, no meio de papelada velha…
- Caramba…Há quantos anos…Dá cá essa porcaria, que eu deito fora.
Ela hesitou em dar-lhe o papel, mas no fim entregou-lho, para que quereria ela aquilo, realmente.
- Diga lá, mãe, o que é isto? — a voz da filha a trazê-la à realidade.
Ela olha para o marido, e ouve-se, há quarenta anos, a murmurar:
- Posso ficar contigo?
A filha continua a olhar para ela.
- Isto — responde ela, finalmente, — é a prenda de Natal mais bonita que o teu pai alguma vez me deu.
in "ACTIVA" Dezembro 2008
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