domingo, 10 de janeiro de 2010

O CHEIRO DA ÁGUA

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EVA DETESTA o verão.
Só por isso aceitou o convite do filho para passar com eles o mês de Agosto. A casa tem paredes grossas que protegem do calor, e às vezes corre uma brisa no pátio.
Mas hoje nem isso.
“Quando era pequena, Agosto cheirava a água quente”, diz, e todos riem, e a neta exclama “ó avó, mas a água não tem cheiro”, e o neto, que é o génio da família, começa a papaguear o que lhe ensinaram na escola, “a água é inodora, incolor” e mais outra coisa de que ele já não se lembra.
E ela sorri porque eles são todos muito novos e ainda não viveram tempo suficiente para saberem que tudo, absolutamente tudo, tem cheiro. Sobretudo a água quente.
Normalmente todos se riem sempre que ela fala de quando era nova, e de como só reconhece as coisas pelo cheiro, e logo o neto volta a atacar, porque também já lhe ensinaram na escola que a isso se chama faro, e só os cães é que têm, e todos voltam a rir e a gabar a sabedoria da criança.
Não tem posição na cadeira, a lona cola-se-lhe às pernas, precisa urgentemente de vento e aspirina.
E mais uma vez a cabeça lhe rebenta com lembranças de um tempo que ela prometeu apagar da sua vida - o vapor da água espalhando-se pela casa inteira, escorrendo das paredes, abafando o ar, misturando-se na voz da tia, insistindo em que o banho devia ser de imersão, senão não era banho não era nada.
O cheiro da água a cair na banheira quando elas voltavam da praia é a recordação mais forte dos verões da sua infância – e a velha Emília a queixar-se sempre das correrias , das gritarias , “ai minha senhora, as meninas cada vez dão mais trabalho, e eu já estou velha para aguentar isto!”
O banho, de água tão quente que às vezes a pele ardia por causa do sal. Primeiro ela, a mais velha; depois as irmãs – e sempre a presença da tia, que superintendia tudo, como um general a dar ordens aos seus homens.
Em Agosto, a mãe e o pai viajavam. O calor atacava, a tia instalava-se lá em casa--e, durante um mês, era como se vivessem numa casa desconhecida.
“Onde é que já se viu pôr os remédios na cozinha!”, berrava a tia, diante das aspirinas e dos benurons e dos xaropes espalhados pelas prateleiras do armário, “isto é um perigo! “, exclamava, enquanto levava tudo para o armário da casa de banho, cheio de champôs e lacas e sabonetes que, por sua vez, por suas mãos passavam para o roupeiro do corredor, donde era retirada a loiça dos domingos (“loiça num roupeiro, oh meu Deus!”) que iria misturar-se no armário da casa de jantar com a que servia nos dias de semana.
Emília não dizia nada, não se desobedece à tia dos patrões, mas abanava a cabeça e suspirava fundo, porque sabia que ia sobrar para ela: assim que eles voltassem, todos os objectos regressavam aos lugares habituais, donde o mês de Agosto os exilara, como se também eles tivessem direito a férias.
Eva precisa mesmo de aspirina.
A nora diz-lhe que há uma caixa no armário da cozinha e, de repente, ela vai mesmo a exclamar “mas onde é que já se viu…”, mas trava a tempo, o calor está a dar-lhe cabo da cabeça, sacode todos esses pensamentos para muito, muito longe, com medo de um dia destes, sem querer, começar a chamar por Emília, ou a falar com voz de general a dar ordens aos seus homens.

in "ACTIVA" Agosto 2009

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