domingo, 10 de janeiro de 2010

GENTE QUE ME SIRVA

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QUANDO ELA CHEGOU ao balcão do supermercado, éramos três à sua frente.
Aquele era um balcão de atendimento rápido, uma ou outra informação, a compra dos jornais, os sacos que ali se depositavam e se vinham depois buscar, e pouco mais.
Um balcão onde tudo se resolvia sem grandes demoras.
Ela sorriu, esperou alguns momentos (o tempo de a empregada fazer o troco de um jornal) e depois, em voz mansa, pediu se nós não nos importávamos de lhe ceder a vez. Tratava-se de uma emergência, dizia, de um caso complicado, ela nem gostava de pedir favores a ninguém, custava-lhe mesmo muito, mas ali tinha que ser, “as senhoras nem imaginam o que se pode passar com as pessoas, a vida dá cada volta!...”
Nós olhámos umas para as outras, e depois para a senhora, aconchegada no seu casacão de fazenda castanha com gola de pele, e que continuava a sorrir e a afirmar que se tratava mesmo de um caso de grande necessidade.
Que grande necessidade seria, isso é que nenhuma de nós conseguia descortinar, pelo menos assim à primeira vista, mas pronto, estávamos em maré de simpatia e boa vizinhança, lá concordámos e dissemos todas que sim, ela que avançasse primeiro.
Então ela dirigiu-se à empregada e, já em tom diferente daquele que usara connosco, disse:
- Preciso de alguém que venha fazer as compras comigo.
Devo dizer, antes de mais, que eu nem sonhava que houvesse esse serviço disponível nos supermercados (e ainda agora não tenho lá muito a certeza de que haja...) – mas pelo menos naquele havia.
A empregada não disse nada, olhou para a senhora também com ar de quem não percebia a urgência nem sequer a necessidade daquele pedido mas, certamente lembrada de que o cliente tem sempre razão, lá ligou para um telefone interno, assegurando depois que uma colega viria dentro de momentos.
- Que não demore muito…--murmurou a senhora. - Estou com uma certa pressa.
- Vem já – garantiu a empregada
A senhora suspirou fundo e murmurou que agora já ninguém trabalhava como devia ser, era tudo um bando de incompetentes e, para além disso, era tudo uma malandragem que até fazia impressão.
A empregada fez que não ouviu e foi atender outros clientes.
A senhora não estaria na sua primeira juventude, pois não, mas também ninguém ousaria chamar-lhe velha. Bem vestida, bem penteada, bem maquilhada, pernas, braços e mãos nos seus devidos lugares, a ver e ouvir normalmente, como ali ficara provado—por mais voltas que eu desse à minha cabeça não conseguia entender por que motivo precisava ela de acompanhante para fazer as compras.
Ela deve ter entendido o nosso silêncio e o nosso olhar meio espantado. Endireitou-se melhor e, sem sorrisos nem voz mansa, disse:
“Aqui onde me vêem, fiquem a saber que vivi sempre numa casa onde havia cinco criadas. Cin-co cri-a-das! Nunca mexi um dedo para fazer fosse o que fosse. E não era depois de velha que o ia fazer. Quando vieram estes tempos…”
E aqui hesitou, faltava-lhe um adjectivo adequado, e nós a olharmos para ela sem sabermos o que dizer, e ela a olhar para nós e com o discurso engasgado, até que, de repente, lhe volta a veia oratória e a diatribe é retomada exactamente no mesmo ponto em que a largara:
“Quando vieram estas modernices, eu disse cá para mim, há-de sempre haver gente que me sirva.”
Respirou fundo e repetiu:
”Sempre!”
Nesse momento chegou a empregada destacada para o serviço, e desapareceram ambas pelos corredores dos legumes e da fruta.
E eu fiquei ali especada junto do balcão, com uma estúpida sensação de ter assistido a um filme muito antigo, e que não acabava nada bem.

In”ACTIVA”, Março 2008

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