domingo, 10 de janeiro de 2010

O QUE SE LEVA DESTA VIDA

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QUANDO NO AR COMEÇA a cheirar a Carnaval, lembro-me sempre do tio Guilherme.
Lá em casa ninguém podia falar nele.
A minha mãe tinha esse método asséptico e eficaz de matar quem a aborrecia. Não se pronunciava o nome e pronto.
Há muitos anos que não vejo o tio Guilherme, coitadinho, que sempre foi um paz de alma. A vida dá muitas voltas e vamos esquecendo as pessoas.
Mas no Carnaval lembro-me sempre dele.
- O meu irmão Guilherme morreu.
Ainda oiço a voz da minha mãe a anunciá-lo, depois de um sábado de Carnaval, exactamente no mesmo tom com que em tempos anteriores anunciara
- A prima Henriqueta morreu
ou
- A vizinha Idalina morreu
E por aí fora.
Embora miúdos, já distinguíamos que, para a minha mãe, havia mortos de primeira (com direito a flores nas jarras diante do retrato) e mortos de segunda (com direito apenas ao silêncio e a olímpicos olhares de desprezo se, por um acaso do destino, se tropeçasse neles no meio da rua)
A tia Vera, por exemplo.
Depois de muitos anos de “morta”, começámos a poder nomeá-la à vontade a partir do momento em que a minha mãe viu o seu retrato na necrologia do jornal.
- Coitada, nem era má pessoa… - murmurou.
Estando efectivamente morta, a tia Vera tinha ressuscitado para a minha mãe.
E não havia gente que a minha mãe mais amasse do que os mortos que só ressuscitavam porque ela deixava.
Mas naquele distante sábado de Carnaval, as coisas começaram logo a correr mal, quando o tio Guilherme se atrasou a chegar ao assalto.
Os “assaltos de Carnaval” em casa de amigos, conhecidos, conhecidos-de-amigos-ou-nem-isso eram a única diversão da época. As portas das casas ficavam abertas pela madrugada fora e entrava quem quisesse.
Mas é claro que tinha de haver alguém, ainda que discretamente, a ter olho no pessoal, e esse era o trabalho do tio Guilherme.
Animava os mascarados, ordenava as pessoas em fila como num comboio, e lá iam percorrendo as divisões da casa, bamboleando-se todos ao ritmo das marchas brasileiras
“o que se leva desta vida/
é o que se come, o que se bebe/
e o que se brinca, ai,ai…”
Mas naquele sábado de Carnaval o tio Guilherme não só chegara atrasado como, ainda por cima, levava a Aida a tiracolo.
Crime sem perdão: com a falta de homens que já então havia, todas as casas que abriam as suas portas para um assalto tinham por dever garantir que nenhuma menina de boas famílias (regra geral cheias de dinheiro e cheias de pelos na cara) ficaria sem par.
Atrelado à namorada, o tio Guilherme era uma baixa de peso.
Mas o pior veio no fim da festa.
Com os vapores do álcool, os ritmos brasileiros, as voltinhas pelas salas, o tio Guilherme baralhou-se e, em vez de sair com a Aida, saiu com a Vera, que estava prometida ao primo Ricardo, emigrado em França.
Nunca mais soubemos dele até ao dia em que recebemos um cartão a anunciar o casamento.
Foi nesse dia que ele morreu para a minha mãe.
E a tia Vera também.
Só que essa teve a sorte de morrer mesmo, o que, para a minha mãe equivalia a ressuscitar e a ganhar direito ao nome.
Acho que há dias vi o tio Guilherme a sair de um café. Velho e a arrastar os pés, mas sobrevivente da minha mãe e da tia Vera.
E quase jurava que o tinha ouvido cantar “o que se leva desta vida, é o que se come, é o que se bebe, é o que se brinca, ai,ai!”
Ai, ai.

in "ACTIVA" Fevereiro 2009

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