domingo, 10 de janeiro de 2010

UM GRANDE HOMEM

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ABRIU O CAIXOTE e o papel de jornal começou a esfarelar-se entre os dedos. Logo ao de cima, o prato das papoilas, o primeiro que pintara. Para ele escolhe o lugar mais visível da parede da sala. E depois os outros todos. Há uma leve poeira à medida que os vai desembrulhando e pregando na parede.
Há 40 anos que sonha fazer isto, desde que, recém-casada, veio viver para Lisboa.
E tem de ser hoje, agora, enquanto espera pelo filho para o primeiro almoço de domingo sem ele.
Martela com cuidado, não quer fazer muito barulho por causa dos vizinhos, mas acaba por encher a parede. Finalmente todos os pratos que pintou estão no lugar onde sempre sonhou vê-los.
Olha para cada um deles e sente uma saudade imensa de si há quarenta anos, uma saudade do cheiro das tintas, dos pincéis, dos olhos seguindo o desenho.
Quando chegou ao casarão de Lisboa tratou de escolher um quarto para lá pôr todo o material, mas logo o marido lhe disse que nem pensasse, enquanto solteira podia divertir-se como quisesse, mas agora, mulher casada, o seu trabalho era a casa e os filhos quando viessem. E não queria palermices daquelas nas paredes, avisava já.
O marido era um homem importante. De vez em quando havia reuniões lá em casa, que se prolongavam pela madrugada fora, e a que ela, evidentemente, nunca assistia. Aparecia apenas para levar café, e para abrir a porta quando todos partiam, e via a deferência com que todos tratavam o marido. Um grande homem, o marido.
Viveu a revolução de Abril com alegria, tudo ia mudar, a liberdade tinha chegado, e ouve na rádio e na televisão, e lê nos jornais, como o marido era importante, como tinha sido um dos pilares da revolução, como tinha lutado pela democracia.
O país desdobrava-se em manifestações, mas ela continuava em casa, a voz do marido, “que é que tu lá ias fazer? Fica mas é a tratar das crianças, que as mulheres não se fizeram para a política.”
Um dia acompanhou-o numa viagem ao Brasil, a única em que ele a levou, porque iam outras mulheres de oficiais e podia parecer mal. Foi nessa viagem que comprou um vestido às ramagens verdes, amarelas e vermelhas.
O vestido que agora veste, feliz por não se ter deixado engordar, por ter o mesmo corpo de há vinte anos, quando ele lhe disse, à chegada a casa, “nem penses em vestir isso, já não tens idade para certas coisas.”
Entre as paredes da casa, os saias-e-casacos cinzentos, a comida servida a horas, foi criando o filho.
Às vezes um ou outro colega do marido ia lá jantar e dizia, “por que é que a D. Laura nunca aparece?”, e logo ele respondia por ela, “ a minha mulher tem uma casa e um filho para cuidar”, e ela sorria.
Envelheceu com os pratos embrulhados no caixote, e o vestido de ramagens ao fundo do guarda-fato.
E agora ele tinha morrido.
No enterro foi beijada e abraçada por gente que nunca tinha visto, os ramos e as palmas e as coroas nem couberam na igreja, e toda a gente a tentar confortá-la, que ao menos ficava a recordação de um homem excepcional, que tinha dedicado a vida inteira à luta pela democracia.
Ouve a campainha, e de repente a voz do filho, espantada, “ó mãe, que é que fez à parede? Quando é que comprou estes pratos todos?”
E ela encolhe os ombros e diz apenas que os tinha guardados há muito tempo.
Depois ele olha para o vestido, para as cores berrantes do vestido, e vai dizer qualquer coisa, mas acaba por não dizer, faz-lhe uma festa e murmura, “fez bem, mãe, fez muito bem em não pôr luto, é com alegria que temos de recordar o pai e, onde quer que ele esteja, tenho a certeza de que está muito feliz por vê-la assim!”
“Também tenho a certeza”, disse ela.
E sentaram-se à mesa.

in "ACTIVA" Julho 2008

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