domingo, 10 de janeiro de 2010

MUDAR DE VIDA

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TINHA-LHE DITO que chegava às oito.
Ela teria preferido antes. Oito horas era a hora do jantar.
À uma almoçava-se; às oito jantava-se.
Quando entrara pela primeira vez naquela casa essa tinha sido uma das primeiras regras que aprendera a não quebrar.
Durante anos a sua vida tinha-se processado dentro de esquemas rigorosos, cronometrada ao segundo, dias certos para tudo, horas certas para tudo.
“Estou velho para mudanças”, tinha dito o marido antes de se casarem, para que ela não dissesse que não sabia o que a esperava.
A família tinha-a avisado: ” tudo menos casar com um viúvo!”.
Porque, explicava-lhe a mãe, “ um divorciado é diferente; se deixou a mulher é porque não tem boas lembranças dela, é porque ela lhe fez a vida negra e, com perdão da palavra, com uma cabra é muito fácil competir. Agora, um viúvo…”
Nessa altura a mãe respirava fundo, e depois explicava-lhe todas as desvantagens de casar com alguém que perdera a mulher, não interessava se há muito se há pouco tempo.
Para a mãe, que roubara descaradamente o marido a uma colega de escola sem nunca ter tido o mais leve vestígio de remorso, casar com um viúvo era coisa inaceitável.
Um viúvo era a missa todos os anos, a romagem ao cemitério, a recordação das coisas maravilhosas que tinham passado juntos, os lugares onde tinham estado, o perfume que ela usava, a maneira como passava as camisas, o tempero que punha no caldo verde.
Casar com um viúvo era casar com um homem que sofria de uma doença incurável: saudades da defunta.
E ninguém podia competir com uma morta, porque todos os mortos são perfeitos.
Ao princípio, achou que a mãe exagerava, mas acabou por lhe dar razão.
Nunca sentira como sua aquela casa velha, com um corredor enorme, quartos interiores, a luz a chegar apenas da janela da cozinha lá ao fundo.
Uma casa desconfortável, já vivida antes dela.
Como um vestido comprado em segunda mão e que lhe estivesse sempre largo.
E, pior do que tudo, o retrato da morta, com um sorriso levemente irónico, pendurado na parede do quarto, diante da cama.
Quando adormecia, a morta era o último rosto que levava nos olhos.
Quando acordava, era a primeira a anunciar-lhe o dia
Durante todos os anos que durara o seu casamento, partilhara sempre com a morta a intimidade do quarto.
Até ao dia em que o marido morreu.
Então toda a família lhe disse que tinha chegado a hora de ter finalmente uma casa sua.
--Uma casa feita à tua imagem – dissera a mãe.
Mas tinham-se passado vinte anos. Vinte anos da sua vida entre aquelas paredes, aquela loiça nos armários, aquela roupa nas arcas, aqueles retratos nas molduras.
O homem devia estar a bater à porta.
O homem que vinha combinar com ela o dia em que viria recolher os móveis, os bibelôs, as montanhas de revistas e jornais velhos, os trastes acumulados durante anos.
Olhou, impaciente, para o relógio.
Já passavam dez minutos das oito, o jantar ia ficar atrasado. Embora, para além dela, não houvesse mais ninguém à mesa. Mas rituais eram rituais.
De repente sentiu-se inquieta, como se um abismo a aguardasse e ela fosse cair nele, desamparada, e teve a certeza de não querer uma casa à sua imagem, de não saber movimentar-se dentro dela.
Como se tivesse engordado, e o vestido largo passasse a apertá-la a ponto de a sufocar.
Quando o homem chegou, pediu muita desculpa, disse que tinha havido um engano, que não queria desfazer-se de nada, que aquele tinha sido o seu mundo, e ninguém se pode separar do mundo onde lançou raízes.
Nessa noite teve a certeza de que o sorriso irónico da defunta se transformara numa sonora gargalhada.

in "ACTIVA" Junho 2008

1 comentário:

  1. Todos os dias são iguais a outros dias. Tirando o fim-de-semana que é sempre igual a outros fins-de-semana.

    Acorda pelas 8.30 horas. Mas não se levanta. Fica no quente dos lençóis meia hora, pedindo que o dia de hoje seja diferente aos outros dias sempre iguais.

    Levanta-se finalmente às 9 horas. Veste o roupão. Passa pela casa de banho. Entra. Sai. Vai à sala, liga o computador, olha pela janela. O mesmo prédio em frente, com as mesmas persianas fechadas, excepção das que estão já levantadas. O mesmo jardim com a mesma igreja. Tudo igual, como num filme em pause.

    Dirige-se à cozinha. O mesmo ritual de sempre. Água na chaleira para um chá preto. Um pão trazido pelo padeiro logo de manhãzinha com Becel Pro-Active, um iogurte de soja de morango porque a lactose, como outras coisas na sua vida, não tolera. A água ferve. Num copo alto de plástico amarelo mete o saco do chá, entorna a água e espera… espera que água cristalina se transforme em líquido acastanhado cafeínizado. Duas colheres e meia de açúcar. E pensa sempre: “não vou beber este copázio todo de chá”…

    Pega em tudo e vai, como sempre, até ao computador que está na sala de jantar… ou será antes sala de computar? Jantares na sala são poucos… computação é bastante… sala de jantar computadora… assim é mais verdadeiro.

    Dá a primeira mordidela no pão. Vê o e-mail. Nada de novo. Uma fotografia sem interesse, uns quantos anúncios de emprego que não o empregam, dois spams e, na lixeira, uns cinco e-mails de enlarge your penis ou get free V.I.A.G.R.A. Quanta preocupação fálica neste mundo. Chega a ficar comovido… mas não traumatizado. Primeiro gole no chá, primeira queimadela na língua. “Não vou beber este chá todo”, pensou.

    Entra nas redes sociais. O moribundo HI5… o enérgico Facebook… viu as mensagens que tinha, jogou os jogos que o entretêm fastidiosamente. Abre o iogurte. Come o iogurte. Vai à janela e fuma um cigarro. “Como são boas as tonturas do primeiro cigarro do dia”, e ri-se.

    Volta ao quarto e escolhe a roupa que cuidadosamente estende em cima da cama. E mais um cigarro, desta vez noutra janela, com outra vista. Prédios de lado e em frente e o Tejo a reflectir o Sol. Volta para dentro, vai à casa de banho, liga o aquecedor, põe a toalha sobre o banco, abre a água quente da banheira. Seguidamente despe-se, entra na banheira e injecta-se de água escaldante. “Fosse a vida sempre líquida e quente e seria tudo tão bom, tão fácil”, reflecte.

    Após secar-se freneticamente com a toalha, veste os boxers ainda na casa de banho e sai maldizendo o frio até ao seu quarto. Atira a toalha para as cordas da roupa e… PAUSA… tudo se suspende porque nesse instante podem existir dois momentos instantes distintos: ou cai a toalha no chão, obrigando-o a ir até à varanda, dobrar-se, apanhar a toalha e estendê-la como deveria ser ou, se tiver sorte (“as coisas estúpidas para onde a sorte é chamada”, filosofa), a toalha fica nas cordas e tudo segue o seu ritmo normal.

    Findo qualquer um destes instantes, o momento seguinte nunca é distinto. Volta para junto da cama, veste primeiro as meias, depois as calças, depois a t-shirt, ao mesmo tempo os sapatos e por fim a malha. Frente ao espelho ajeita o mal jeito do cabelo.

    De novo na sala de jantar computadora pressiona F5, tudo faz refresh… tudo menos ele… uma ou outra coisa nova no ecrã, ou talvez não. Seja como for é indiferente. Volta ele para a janela, novo cigarro acesso e pensa: “Pronto, está tudo. E agora?”

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