OLHO PARA TI, nem sei bem porquê, és uma mulher de meia idade igual a todas que enchem este centro comercial, mas entras no café, escolhes uma mesa ao pé de mim, também não há grande alternativa, as outras estão todas ocupadas, sacos e mais sacos a encherem cadeiras como sempre acontece nestes lugares.
Bebes rapidamente o garoto que pediste, olhas para o relógio, e vais já a levantar-te quando, de repente, uma amiga te aparece pela frente, o teu olhar espantado quando ela te agarra o braço, te enche de beijos, te obriga a sentar de novo.
Tu ainda murmuras “ia já a sair” mas ela nem ouve, ao tempo que não se encontravam, exclama, e tu olhas discretamente para o relógio, “estava só a descansar uns minutos, a minha vida é uma correria constante”, dizes, mas ela volta a não ouvir, ou então ouve mas as tuas correrias não a interessam por aí além, o que ela quer mesmo é saber que é feito de uma data de gente, e pergunta por um rol infindável de nomes, que lhes aconteceu?, estão bem?, e fulano ainda é vivo? e os teus filhos ainda estão casados?, sim porque isto, minha filha, é um casa descasa que vai por aí que a gente nunca sabe, eu já nem pergunto pelos maridos ou mulheres quando encontro alguém, digo sempre “tudo bem?”, e pronto!
Olhas desesperadamente para a porta de saída do centro, mas nem isso ela percebe, vai embalada na conversa, caramba! está mesmo contente por te ter encontrado, e tu também não lhe queres estragar a alegria.
Com algum esforço (a voz dela é muito aguda, cansa qualquer um…) vais dando notícias de todos, a que ela vai sempre contrapondo exclamações de surpresa, ah! vê lá tu !, quem diria!.
E de repente pergunta pelo teu marido, se continua a viajar muito ou se já se reformou, e tu ficas calada por alguns instantes, olhando ainda com mais insistência para a porta, para o relógio, para qualquer coisa que venha em teu auxílio, e murmuras:
- Está numa clínica. Tem Allzheimer.
Ela fica a olhar para ti, subitamente esgotadas todas as palavras, como se de repente te quisesse ver muito longe dali, como se a dor de cada sílaba fosse doença contagiosa, e tu explicas que todos os dias o vais ver, que todos os dias estás com ele todo o tempo possível, mas que ele já nem a ti conhece,
olha-te como se fosses uma estranha, e grita muito, e tu tens muita pena de não o poderes ter em casa, levá-lo para aquela clínica foi o maior desgosto da tua vida.
Dizes tudo com ar cansado, mas muito doce, e acrescentas que lhe tinhas prometido chegar hoje às quatro horas, com os chocolates de que ele gosta muito, e já vais chegar atrasada.
Ela olha para ti e murmura, um pouco para te consolar, um pouco para preencher um silêncio incómodo:
- Deixa lá, se dizes que ele já nem te conhece, também não vai saber que chegas atrasada…
E é então que tu a olhas bem nos olhos, e te levantas, decidida, da cadeira, e agarras no saco de plástico onde levas os minúsculos quadrados de chocolate preto de que ele gosta tanto, e mudas a tua voz doce para uma voz estranhamente firme, e lhe respondes:
- Não sabe ele, mas sei eu.
E sais quase a correr do centro comercial.
E eu fico a olhar para o teu rasto, com muita pena de não te conhecer e de não te poder dizer que esta foi, de certeza, uma das histórias de amor mais bonitas que me lembro de alguma vez ter ouvido.
In “ACTIVA”, Janeiro 08
Bebes rapidamente o garoto que pediste, olhas para o relógio, e vais já a levantar-te quando, de repente, uma amiga te aparece pela frente, o teu olhar espantado quando ela te agarra o braço, te enche de beijos, te obriga a sentar de novo.
Tu ainda murmuras “ia já a sair” mas ela nem ouve, ao tempo que não se encontravam, exclama, e tu olhas discretamente para o relógio, “estava só a descansar uns minutos, a minha vida é uma correria constante”, dizes, mas ela volta a não ouvir, ou então ouve mas as tuas correrias não a interessam por aí além, o que ela quer mesmo é saber que é feito de uma data de gente, e pergunta por um rol infindável de nomes, que lhes aconteceu?, estão bem?, e fulano ainda é vivo? e os teus filhos ainda estão casados?, sim porque isto, minha filha, é um casa descasa que vai por aí que a gente nunca sabe, eu já nem pergunto pelos maridos ou mulheres quando encontro alguém, digo sempre “tudo bem?”, e pronto!
Olhas desesperadamente para a porta de saída do centro, mas nem isso ela percebe, vai embalada na conversa, caramba! está mesmo contente por te ter encontrado, e tu também não lhe queres estragar a alegria.
Com algum esforço (a voz dela é muito aguda, cansa qualquer um…) vais dando notícias de todos, a que ela vai sempre contrapondo exclamações de surpresa, ah! vê lá tu !, quem diria!.
E de repente pergunta pelo teu marido, se continua a viajar muito ou se já se reformou, e tu ficas calada por alguns instantes, olhando ainda com mais insistência para a porta, para o relógio, para qualquer coisa que venha em teu auxílio, e murmuras:
- Está numa clínica. Tem Allzheimer.
Ela fica a olhar para ti, subitamente esgotadas todas as palavras, como se de repente te quisesse ver muito longe dali, como se a dor de cada sílaba fosse doença contagiosa, e tu explicas que todos os dias o vais ver, que todos os dias estás com ele todo o tempo possível, mas que ele já nem a ti conhece,
olha-te como se fosses uma estranha, e grita muito, e tu tens muita pena de não o poderes ter em casa, levá-lo para aquela clínica foi o maior desgosto da tua vida.
Dizes tudo com ar cansado, mas muito doce, e acrescentas que lhe tinhas prometido chegar hoje às quatro horas, com os chocolates de que ele gosta muito, e já vais chegar atrasada.
Ela olha para ti e murmura, um pouco para te consolar, um pouco para preencher um silêncio incómodo:
- Deixa lá, se dizes que ele já nem te conhece, também não vai saber que chegas atrasada…
E é então que tu a olhas bem nos olhos, e te levantas, decidida, da cadeira, e agarras no saco de plástico onde levas os minúsculos quadrados de chocolate preto de que ele gosta tanto, e mudas a tua voz doce para uma voz estranhamente firme, e lhe respondes:
- Não sabe ele, mas sei eu.
E sais quase a correr do centro comercial.
E eu fico a olhar para o teu rasto, com muita pena de não te conhecer e de não te poder dizer que esta foi, de certeza, uma das histórias de amor mais bonitas que me lembro de alguma vez ter ouvido.
In “ACTIVA”, Janeiro 08
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