domingo, 10 de janeiro de 2010

O ANJO DE AGOSTO

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QUANDO A FOTOGRAFIA lhe veio parar às mãos, pelo meio de muitos papéis amarelecidos por muitos anos passados naquela gaveta, ela nem queria acreditar. Mas a dedicatória não oferecia dúvidas:
“À menina Geninha, no seu 10.º aniversário, envio-lhe os meus parabéns com desejos de que esta data tenha bis por muitos anos na companhia de seus Exº Padrinhos, são os desejos de Gualberto Santos (o do Saxofone)”
O estilo podia não ser muito literário, mas a letra era muito bonita, com as maiúsculas cheias de floreados, numa tinta a que os mais de 50 anos passados tinham dado um tom de azul muito claro.
Eugénia (ao tempo que não era “menina Geninha” para ninguém..) sorriu para aquele homem de meia idade , de risco ao meio, fato e gravata, de pé , as mãos agarrando um saxofone, que lhe pendia do pescoço.
E com uns olhos muito tristes.
Eugénia sempre se lembra dele com olhos tristes, tocando à noite, para animar um pouco os jantares daquele hotel das termas, onde os padrinhos passavam sempre o mês de Agosto .
Nunca se lembra de alguma vez o ter visto rir.
Nem sequer sorrir.
Exactamente como o Buster Keaton dos filmes da sua infância.
O Sr. Gualberto tocava saxofone. E o instrumento fazia de tal maneira parte de si próprio que, de cada vez que se apresentava a alguém, fosse adulto ou criança (e ele falava a uns e outros exactamente da mesma maneira), batia ligeiramente os calcanhares e murmurava:
“Gualberto Santos, o do saxofone”.
O Sr.Gualberto era o anjo da guarda das crianças naquele velho hotel das termas de Caldelas, onde as horas escorriam dolorosamente, sem nada para fazer. Eugénia ainda hoje se lembra: nem um baloiço, nem um escorrega, nada. Tudo naquele lugar era unicamente pensado para adultos muito velhos, a clientela que ali procurava remédio para todas as maleitas.
Mas o Sr.Gualberto inventava festas e jogos, sabia lengalengas e adivinhas, contava histórias como ninguém (sempre com aquele ar de sexta-feira santa...), punha os miúdos a cantar—e, de manhã à noite, andava sempre com uma multidão de catraios atrás dele.
Eugénia estremece, “meu Deus, seria que hoje isso poderia acontecer assim, com a cabeça das pessoas envenenada por tanta coisa que se lê nos jornais?” - mas afasta para bem longe esse pensamento para recordar apenas esses meses de Agosto da sua infância, com a sensação de eles nunca terem pertencido a nenhum tempo, a nenhum lugar, qualquer coisa que chegava quando Agosto chegava ,e acabava quando Agosto acabava.
O seu breve tempo de liberdade.
Depois era o regresso a casa, as zangas constantes, os castigos — e o anjo da guarda a ficar longe, muito longe, e sem poder fazer nada por ela.
Porque o seu poder exercia-se apenas naquele pequeno paraíso de Agosto, quando os padrinhos a largavam e ela podia, no breve espaço de trinta dias, ser feliz.
De repente recorda-se com grande nitidez do rosto e dos nomes das outras crianças, “Bé, Pedro, Tracy, Mitucha, Miqui, João Pedro “ que nunca mais viu, que se calhar já morreram, ou são avós, como ela.
E gostava de saber se a todas o Sr.Gualberto terá mandado uma fotografia no dia dos anos, e estupidamente espera que não, espera, mas espera mesmo, que há 50 anos ela tenha sido especial para ele.
Um dia destes há-de comprar uma moldura, a mais bonita que encontrar, para pôr a fotografia.
Como se se tratasse da fotografia do seu primeiro namorado.

in “ACTIVA”, Agosto 08

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