domingo, 10 de janeiro de 2010

A PRIMEIRA MALA

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UM AMIGO há dias disse-me:
- Nunca percebi por que andas sempre com malas tão pesadas… De resto, é estranho que só vocês é que usam esses alforges, carregadíssimos, como se transportassem o mundo aos ombros… Nós… tudo nos cabe dentro dos bolsos.
Claro que isto daria para um tratado sociológico, as malas das mulheres, as malas dos homens, o mundo aos nossos ombros, etc, etc, mas não é este o lugar nem esta a hora.
De qualquer modo, fiquei a olhar para a minha (para mim) normalíssima carteira— e a pensar nas malas.
Malas mesmo.
Das que se levam quando se vai para longe.
E as coisas que cabem nas nossas malas!...
Objectos, lembranças, recordações de gente que fomos encontrando ao longo desta (mais ou menos) longa viagem que é a nossa vida, colecções que às vezes os outros consideram meio tontas e que vamos fazendo ao longo dos tempos: a minha amiga Margarida, por exemplo, quando vem a Portugal, traz a mala cheia de folhas secas do Outono de Oxford, onde vive, para me dar. E donde quer que eu vá, trago sempre pedras dentro da mala para a minha enorme colecção…
(Quando vim de Timor ia-me dando mal, porque as pedras lindíssimas que eu tinha apanhado nas areias da praia de Liquiçá - eram fósseis, ninguém as podia trazer… Mas pronto, eu trouxe, muito escondidas, e garanto que estão em lugar de honra cá em casa…)
Mas voltando às malas, nunca me esqueço da primeira vez que fiz uma mala.
Uma mala verdadeira.
Uma mala só minha.
Não aquelas malas que são apenas sacos ou mochilas e que os miúdos fazem quando acompanham os pais para férias, e eles berram:
- Vai fazer a tua mala! Se estás à espera que eu a faça, bem podes esperar…
E eles têm de pensar se levam o pijama e mais a escova de dentes, e mais a t-shirt cheia de caveiras, e mais a outra a escorrer sangue de vampiro…
Não.
Nada disso.
Aquela era uma mala a sério.
Uma mala de quem ia partir e não sabia quando voltava.
Nem se voltava.
Havia muito pouca coisa realmente importante que eu quisesse levar.
A vida, e a casa, e as pessoas que eu ia deixar não me tinham dado motivos para saudades, e eu não queria levar comigo nada que não fosse realmente essencial.
Sobretudo não queria nada que as recordasse — como se eu quisesse renascer, num lugar diferente, entre gente diferente.
Claro, as coisas do dia a dia, o que se veste, o que se calça, mas essas coisas, ainda hoje, não ocupam muito espaço nas minhas malas.
Eu tinha nessa altura pouco mais de 20 anos.
Quer dizer: estávamos, praticamente, na pré-história…
Era um tempo em que não havia telemóveis, nem iPOD, nem MP3, nem computador, nem sequer ainda — pasmem bem! — CD´s… Os discos eram uma coisa redonda de vinil, era preciso maquinetas grandes para os tocar.
Hoje leva-se no bolso toda a música que se quiser.
Hoje teclamos uns algarismos e falamos com o mundo inteiro.
Naquele tempo, quando se viajava, ficava-se mesmo separado do mundo.
Por isso eu queria levar comigo, dentro da mala, qualquer coisa que me permitisse matar as saudades que acabariam por chegar.
Qualquer coisa que levasse consigo um bocadinho do meu país.
E enfiei na mala um livro de poesia do Herberto Hélder.
“A Colher na Boca”.
Era um volume de capa branca, apenas com as letras do título ao meio — ou assim eu o recordo, à distância destes anos todos. Não me lembro, confesso, do nome da editora.
E posso dizer que aqueles poemas foram a minha salvação.
Aí eu entendi como a língua cria laços que muito dificilmente se apagam.
E como as palavras nos prendem, e nos ajudam a sobreviver.
Sozinha, no meu minúsculo quarto da Rue Cujas, em Paris, nem sempre os dias eram fáceis.
As chamadas de telefone eram caras, tinha de ir ao correio para as fazer — e convinha marcar com antecedência, dava o número e o nome da pessoa com quem queria falar, pois , se não o fizesse, a pessoa podia não estar em casa, e gastava-se uma chamada em vão.
Era mesmo, mesmo a pré-história…
Eu, que nunca fui de decorar muita coisa, (a não ser o nome das serras, e dos rios, e das linhas de caminho de ferro que na escola nos obrigavam a recitar, com mais unção do que se se tratasse do Pai Nosso…) sabia naquela altura – e ainda sei hoje - muitas estrofes de cor.
Lembro-me de repetir
“toda a juventude é vingativa
deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura”
Ou então
“não sei como dizer-te
que a minha voz te procura”

Assim, versos desgarrados, porque os poemas eram muito longos, falavam muito de mulheres, e de água, e de sangue, e de peixes, e eu lia-os e relia-os porque aquela era a minha língua, e enquanto eu a pudesse falar, o país estava dentro de mim e não me abandonava.
Lembro-me que nos dias em que eu chegava ao quarto sem ter pronunciado uma única palavra de português naquelas horas todas — eu corria a abrir o livro, e a ler o primeiro poema que aparecia, em voz alta, sempre em voz alta — para ter a ilusão de companhia, e para me sentir em território meu.
Só nessa altura entendi como se podia ter dolorosas saudades de falar a nossa língua.
Só nessa altura percebi o significado verdadeiro de “língua-mãe”.
Depois o tempo passou, a vida deu muitas voltas, e eu fiz a mala e regressei.
Mas não trouxe o livro: alguém, que ia lá ficar, precisava dele muito mais do que eu.

in "AUDÁCIA" Janeiro 2010

9 comentários:

  1. Cara Alice,

    Não queria deixar se ser o primeiro a dar-lhe um abraço!

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  2. O CMR adiantou-se!!! :)

    As maiores felicidades para o seu menino...

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  3. Alice
    Não me conhece, mas sou sua fã há muitos anos, tal como os meus filhos. Por isso, deixe-me ter a honra de ser a sua primeira seguidora.
    Um beijo com carinho

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  4. Belíssimo texto que me deu um prazer enorme,ao lê-lo, não só pela riqueza de conteúdo e sentimento, mas ainda pela memória que me trouxe dos meus momentos em terras estrangeiras. Por cá, vou falando, escrevendo e abusando do Inglês, algum Francês e Espanhol; Quando estou lá fora, depois das reuniões, interpretações e jantares sociais, sempre que chego ao quarto de hotel e me preparo para dormir, fico ansiosa por ler o livro português que, na altura, levo como companhia. Um ABREIJO.

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  5. Cara Alice
    Aqui está uma excelente notícia ! Depois de ler os seus livros,temos também a possibilidade de a encontrar na blogosfera .
    Vamos todos ficar mais ricos. Vou passando com regularidade.
    Muitas felicidades

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  6. Cara Alice Vieira,
    muito obrigado por me ter propiciado um instante de leitura tão denso e salutar, na verdade, como diz o texto de forma lapidar: "Aí eu entendi como a língua cria laços que muito dificilmente se apagam.
    E como as palavras nos prendem, e nos ajudam a sobreviver.". Palavras que me fizeram evocar a minha estada também em Paris com muitos livros de poemas, também do HH e muitos de António Ramos Rosa. Palavras que têm em acto uma reminiscência feliz para mim de uma frase de G. Deleuze: "la litérature est santée."
    Com admiração,
    luís filipe pereira

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  7. É um privilégio poder segui-la do Facebook e encontrar a sua maravilhosa escrita. Obrigada por partilhar. Graça

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  8. Obrigado Alice Vieira pelo seu blogue - sempre podemos ler as melhores crónicas contemporâneas escritas em português.
    Um abraço de Torres Novas

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