FOI AO CHEGAR A CASA que encontrou os bilhetes para o concerto.
Sempre a mesma coisa: compra dois, na esperança de poder cravar alguém para ir com ela, mas acaba sempre por ir sozinha, e não tem graça nenhuma ouvir música sozinha, sem poder bichanar para o lado “acho que o fagote está meio desafinado“, ou “ a tuba já precisava de ser limpa”…
Abre o computador, para ver se há correio — mas fica logo maldisposta, sempre a mesma coisa, “se não reencaminhar isto dentro de 15 segundos…”
Suspira fundo e carrega no botão para apagar aquela série de imagens que a ameaçam de terríveis fatalidades se ela não as passar para pelo menos vinte amigos.
Se não o fizer — avisam-na — há-de acontecer-lhe o mesmo que ao presidente da Argentina, a quem morreu um filho por ter quebrado a corrente.
Ela murmura “que tolice”, mas não é isso que a aborrece, até porque ela não tem filho nenhum, e tem a vaga ideia de que, na Argentina, não há UM presidente mas UMA presidente, e é suficientemente racional para saber que, se não reenviar aquela treta, não lhe vai acontecer desgraça de maior, nem ao filho que não tem, nem ao presidente da Argentina.
O que verdadeiramente a deprime, o que a põe virada do avesso, é aquela lenga-lenga do “reenviar a 20 amigos”.
Mas alguém tem 20 amigos?
Amigos mesmo, daqueles a quem se pode ligar às cinco da manhã e eles, assim que atendem, perguntam logo “precisas que vá aí?”, já com o braço a agarrar o capacete da mota?
Uma vez, ligou num fim de semana a um namorado que acabara de a deixar por outra dez anos mais velha e, apesar da voz anasalada que fabricou, e do rol de doenças que inventou para o encher de remorsos, o mais que conseguiu ouvir-lhe foi: “toma uma aspirina que eu na 2ª, se puder, telefono”.
Vinte amigos—quando a ela lhe bastava apenas um, que a acompanhasse ao CCB.
Procura na agenda, podia ser que nos últimos dias a lista tivesse aumentado sem ela ter dado por isso. Mas, do A ao Z (incluindo aquelas letras que dantes eram ilegítimas na nossa língua mas que o acordo ortográfico, como bom pai, decidira perfilhar) os resultados não foram brilhantes.
Começa a chegar-lhe a vontade de ligar para o Sr.Valdemar, que é o técnico de computadores que a salva das desgraças electrónicas, ou para o menino do call-center que lhe atura as reclamações da netcabo, ou para o atendimento da CP, “muito bom dia, fala Pedro, em que posso ajudá-la?”, e explicar que não quer ajuda nenhuma, quer só saber onde encontrar um amigo que a ature, um único, nada daquele exagero dos 20, que a corrente dos azares exige.
Toca o telefone e reconhece logo a voz aguda da mãe, a contar as habituais desgraças, a osteoporose da avó Carlota, a anemia da prima Albertina, ali não há possibilidade de fugir, nem mesmo arranjando 20 amigos para travar os perigos, e é então que de repente se ouve a dizer-lhe “quer vir comigo a um concerto?”, e a mãe espantada, porque nunca ela se lembrou de a convidar fosse para que fosse, e ela já arrependida, porque vai ser a noite inteira a ouvir recriminações, e relatos de zangas, e queixas da família, mas antes isso que ficar sentada sozinha, e será a sua boa acção de princípio de ano.
Combina a hora a que a vai buscar, e desliga o telefone. E dá consigo a olhar para o espelho e a sorrir, com a sensação estúpida de ter salvo o filho do Presidente da Argentina.
Sempre a mesma coisa: compra dois, na esperança de poder cravar alguém para ir com ela, mas acaba sempre por ir sozinha, e não tem graça nenhuma ouvir música sozinha, sem poder bichanar para o lado “acho que o fagote está meio desafinado“, ou “ a tuba já precisava de ser limpa”…
Abre o computador, para ver se há correio — mas fica logo maldisposta, sempre a mesma coisa, “se não reencaminhar isto dentro de 15 segundos…”
Suspira fundo e carrega no botão para apagar aquela série de imagens que a ameaçam de terríveis fatalidades se ela não as passar para pelo menos vinte amigos.
Se não o fizer — avisam-na — há-de acontecer-lhe o mesmo que ao presidente da Argentina, a quem morreu um filho por ter quebrado a corrente.
Ela murmura “que tolice”, mas não é isso que a aborrece, até porque ela não tem filho nenhum, e tem a vaga ideia de que, na Argentina, não há UM presidente mas UMA presidente, e é suficientemente racional para saber que, se não reenviar aquela treta, não lhe vai acontecer desgraça de maior, nem ao filho que não tem, nem ao presidente da Argentina.
O que verdadeiramente a deprime, o que a põe virada do avesso, é aquela lenga-lenga do “reenviar a 20 amigos”.
Mas alguém tem 20 amigos?
Amigos mesmo, daqueles a quem se pode ligar às cinco da manhã e eles, assim que atendem, perguntam logo “precisas que vá aí?”, já com o braço a agarrar o capacete da mota?
Uma vez, ligou num fim de semana a um namorado que acabara de a deixar por outra dez anos mais velha e, apesar da voz anasalada que fabricou, e do rol de doenças que inventou para o encher de remorsos, o mais que conseguiu ouvir-lhe foi: “toma uma aspirina que eu na 2ª, se puder, telefono”.
Vinte amigos—quando a ela lhe bastava apenas um, que a acompanhasse ao CCB.
Procura na agenda, podia ser que nos últimos dias a lista tivesse aumentado sem ela ter dado por isso. Mas, do A ao Z (incluindo aquelas letras que dantes eram ilegítimas na nossa língua mas que o acordo ortográfico, como bom pai, decidira perfilhar) os resultados não foram brilhantes.
Começa a chegar-lhe a vontade de ligar para o Sr.Valdemar, que é o técnico de computadores que a salva das desgraças electrónicas, ou para o menino do call-center que lhe atura as reclamações da netcabo, ou para o atendimento da CP, “muito bom dia, fala Pedro, em que posso ajudá-la?”, e explicar que não quer ajuda nenhuma, quer só saber onde encontrar um amigo que a ature, um único, nada daquele exagero dos 20, que a corrente dos azares exige.
Toca o telefone e reconhece logo a voz aguda da mãe, a contar as habituais desgraças, a osteoporose da avó Carlota, a anemia da prima Albertina, ali não há possibilidade de fugir, nem mesmo arranjando 20 amigos para travar os perigos, e é então que de repente se ouve a dizer-lhe “quer vir comigo a um concerto?”, e a mãe espantada, porque nunca ela se lembrou de a convidar fosse para que fosse, e ela já arrependida, porque vai ser a noite inteira a ouvir recriminações, e relatos de zangas, e queixas da família, mas antes isso que ficar sentada sozinha, e será a sua boa acção de princípio de ano.
Combina a hora a que a vai buscar, e desliga o telefone. E dá consigo a olhar para o espelho e a sorrir, com a sensação estúpida de ter salvo o filho do Presidente da Argentina.
in "ACTIVA" Janeiro 2009
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