quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A INFIDELIDADE SINTÉTICA

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Por Catarina Fonseca

DESCULPEM LÁ: qual é a mulher que tem tempo para ser infiel?
Um homem, pronto, depois de um extenuante dia de trabalho tem duas hipóteses: ou é infiel ou faz um blogue, às vezes as duas coisas ao mesmo tempo.
Agora nós?

Vamos ser infiéis quando? Pomos a criança a dormir abraçadinha ao Ruca e dizemos: ”aguenta aí caladinho que a mamã vai ali ser infiel e já volta”?

Programamos o microondas para dali a meia hora e quando a coisa apita dizemos “ai ó Luis Miguel pára lá com isso que tenho de ir servir o jantar”?

Encaixamos a loiça na máquina e vamos lá acima ter um caso com o Paulinho do 5.º esquerdo enquanto as powerballs superdesengordurantes 3-em-1 tentam ferrar os dentes nos restos da feijoada da prataria?
E se fosse só o tempo, inda se dava um jeitinho.
Mas com quem?

Já dá uma trabalheira tão grande encontrar algum espécime a quem valha a pena ser fiel, quanto mais um sobresselente.
Os homens ainda se percebe, porque mulheres com quem vale a pena trair as outras são ao pontapé.
Mas nós?

Vamos ser infiéis com quem, se ainda por cima eles são todos iguais, mais bigode menos bigode?
Ainda por cima, trair em termos dá uma trabalheira tão grande que às tantas começamos a pensar que, em vez de pôr a peruca loira e irmos para o Íbis dizer que nos chamamos Soraia Marlene, valia mais a pena ficar em casa a ver a “Música no Coração”.

Solução: se os homens não valem a pena, aprendi neste número da revista Activa que ainda nos restam os bonecos.
Claro que há o pormenor desagradável de nos tornarem imediatamente psicopatas, mas o que é isso ao pé das suas vantagens: não refilam se mudamos de canal a meio do jogo, nunca nos dizem que a mãezinha deles é que fazia bem pastéis de bacalhau, e não ressonam.
É verdade que não se levantam se o bebé chora, não têm uma conversa por aí além, e não lavam o chão da casa de banho, mas qual é a diferença entre isso e a vida normal?

Uma vez em que estive entre a vida e a morte, uma amiga minha apareceu-me no hospital com o Joca ao ombro. O Joca é um cavalheiro em tamanho natural, com cabeça de esferovite, olhos pintados como os do Tutankamon, bigode de cabelo verdadeiro, ténis de algum sem-abrigo e boné de beisebol.
Ficou sentado na cama ao lado da minha a fulminar quem entrava.
As enfermeiras faziam visitas guiadas para o verem, e enganavam-se a espetar-me a agulha na veia porque os olhos aterrados escorregavam-lhes sempre para o Joca.
Inda esperei que funcionasse como remédio anti-carjacking e andei com ele uns tempos ao meu lado no carro. Mas acabei por tirá-lo, porque só vinham turistas tirar-me fotografias para provar como Portugal estava povoado de cromos e, além disso, ninguém quer “jackar” um calhambeque que já assistiu ao Euro 94.
Hoje o Joca está sentado a um canto, como um avô caquético.
A minha sobrinha mais nova tem um medo dele que se pela. Passa de lado e olha-o de revés, como se esperasse que ele lhe saltasse para a espinha a qualquer momento.
Às vezes diz-me:
“O Joca tem o boné nos olhos”
Com ar reprovador, como se eu não tratasse bem o meu marido.
Pode estar descansada. Não me passa pela cabeça trair o Joca.
Psicopata inda vá; infiel é que não.

(Activa, Setembro 2008)

1 comentário:

  1. Catarina, já tinha lido este texto, aliás, já li todas as crónicas "Passiva", porque, confesso, adoro tudo o que escreve :)

    Muito obrigado pela boa disposição e pela forma jovial como mostra(m) a vida :)

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